São Paulo, quarta-feira, 23 de abril de 1997
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Índio, gente, indigente

KAKA WERÁ

O que é um índio pataxó dormindo dentro da noite aberta no ponto de ônibus da capital do país? O que dormia ali? Dormia uma história. Dentro da noite fria de Brasília repousava por um instante quinhentos anos de lutas com o governo geral desta capitania hereditária. Repousava da luta de 1553 quando o então governador geral da Bahia, Duarte da Costa, permitiu que colonos escravizassem e tomassem as terras dos grupos tribais mais próximos dos estabelecimentos coloniais. Repousava de luta de 1555 quando violentos conflitos entre índios e brancos dizimaram grande parte dos tupiniquins do litoral baiano, obrigando 12 mil índios a emigrarem da Bahia em direção ao Peru. Obrigando 60 mil tupinambás, seus parentes mais velhos, a fugir, buscando a proteção da mata junto à foz do rio Madeira; ficando aos que insistiram em continuar no porto inseguro daquela bahia o apelido de "pataxó", que significa "o que restou", "a sobra". E o que restou dormia buscando o repouso naquela noite; da luta de 1557 quando chegou Mem de Sá, terceiro governador geral, e os pataxós recusaram-se a plantar, com o objetivo de resgatar as terras e a autonomia cultural em que viviam, provocando a fome por toda a província, que dependia do que eles cultivavam; que fez com que o governo reagisse com três atos civilizados: "guerra justa", escravização e conversão. E dos que restaram, ficaram menos ainda. Então, o que dormia ali, na passagem do dia do índio para o dia do descobrimento do Brasil? Um pataxó. O que restou da resistência entre a passagem das longas noites desses dias. Repousando das lutas de 1500, 1600, 1700, 1800, 1900, 1997.
Mas a um cidadão que dorme tendo a noite como teto, a civilização nomeia-o indigente. Curiosa palavra de triste significado, representando a miséria humana. Nosso povo, que sempre habitou a floresta, só conheceu o espírito dessa palavra com a chegada da civilização, e tem sido dada aos que restaram ainda hoje essa lição de cor cinza e dolorosa, que passeia, urra e dorme pelas noites frias das grandes cidades. E hoje não só índios, mas gente de outras ascendências que fizeram esse país tem suas gerações vivendo a imerecida lição da indigência. Indulgência de quem? Não se questiona. Sente-se que é feio. É tão feio que causa repugnância aos olhos dos filhos civilizados. Cheira mal. Não combina com as luzes de neon, nem com o colorido das festas dos jovens. Essa miséria humana não lhes pertence, então tomam a atitude de queimá-la. Será que eles não sabem que devem a boa vida que levam aos antepassados desses que se escoram no frio das noites? Será que eles não sabem que a beleza dessa cidade foi erguida do suor de muitos dos antepassados desses que gemem sem chão? Será que eles não sabem que o dinheiro que gastam hoje futilmente tem sido tirado secularmente na forma de aliciamentos, decretos, leis, guerras, epidemias, conversões religiosas; dos antepassados dessa terra hoje chamada Brasil? Será que eles não sabem que a miséria que vêem nada mais é do que o reflexo da miséria de espírito que habita neles e na civilização? E como filhos do poder da civilização caberia-lhes então queimar essa pobreza que habita em suas mentes e cultura, enraizada na forma de segregação racial e social, disfarçada pelo neon e pela pompa dessa velha capitania hereditária. Será que não sabem que quinhentos anos de atitudes do conselho, da corte, da mentalidade desse "governo geral" só têm gerado essa indigência cívica? E aquele que restou, o pataxó, naquela noite, só repousava, buscando recompor as forças do guerreiro, para continuar sua luta sagrada pela vida, pelas terras que alimentavam a boca de seus antepassados, que foram tiradas da noite para o dia no ano de 1553, e que dessa data em diante tem alimentado somente a boca dos filhos civilizados, de seus pais e seus governantes.

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