São Paulo, sexta-feira, 25 de abril de 1997
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Caricatura jurídica

DALMO DE ABREU DALLARI

A ordem jurídica do governo Fernando Henrique Cardoso não passa de caricatura grotesca de uma ordem legítima e democrática. Tem alguns traços da figura verdadeira, mas as deformações são tantas e tão acentuadas que mal se percebem os contornos da imagem original.
O presidente abusa das medidas provisórias, instrumentos que foram previstos somente para situações excepcionais, em que o Legislativo esteja impossibilitado de exercer sua função de legislador. Além de abusar, editando medidas provisórias em grande número e sem que estejam presentes os pressupostos constitucionais da necessidade e urgência, o presidente vem usando fraudulentamente desse instrumento excepcional.
Diz a Constituição que a medida provisória, mesmo quando cabível, perderá a eficácia desde sua publicação se não for convertida em lei dentro de 30 dias. E diversas medidas provisórias foram republicadas várias vezes, com pequeníssimas alterações, para terem duração de muitos meses, fraudando a limitação constitucional.
Contrariando os mais elementares princípios jurídicos, muitas justificativas de decisões do governo ofendendo direitos oscilam entre a ignorância e a chicana, tendo-se chegado agora ao cúmulo de repor na ordem jurídica brasileira alguns exemplares do entulho autoritário que a duras penas tinham sido varridos para fora.
É muito expressivo o que acaba de acontecer com a Medida Provisória (MP) número 1.570, editada pelo presidente em 26 de março de 1997, feita para restringir gravemente a concessão de liminares. Chama logo a atenção o fato de se ter redigido essa medida usando velha técnica da malícia legislativa.
A medida não diz diretamente qual o conteúdo de seus dispositivos, limitando-se a fazer referência a leis, artigos e parágrafos que estão sendo alterados, de tal forma que, para saber do que trata essa medida provisória, é preciso consultar um repertório de legislação, que abranja desde 1964, pois várias restrições à defesa de direitos, criadas no período militar, foram incorporadas à medida 1.570.
Maliciosamente, a MP, que foi feita para impedir a concessão de liminares, não usa a palavra "liminar", já tradicional no direito brasileiro, mas fala em "tutela antecipada", do moderno jargão teórico-jurídico. E procurando justificar a medida e criar a impressão de que ela tem alcance reduzido, sendo apenas a extensão de restrições já existentes, afirmou o ministro da Justiça que "a tutela antecipada foi introduzida no Direito brasileiro em 1994, na reforma do Código de Processo Civil".
O ministro ignora ou esqueceu que a lei número 191, de 16 de janeiro de 1936, estabeleceu textualmente o seguinte: "Quando se evidenciar desde logo a relevância do fundamento do pedido, e decorrendo do ato impugnado lesão grave irreparável do direito do impetrante, poderá o juiz, a requerimento do mesmo impetrante, mandar preliminarmente sobrestar ou suspender o ato aludido". Aí está, claramente, a tutela antecipada do direito, mediante a antiga e consagrada liminar, necessária quando se sabe que no sistema processual brasileiro as decisões judiciais, com frequência, demoram anos.
Mais grave do que isso, o governo requintou na agressão à ética e ao direito. A MP 1.570 foi editada pelo presidente para proteger os atos ilegais praticados pelo mesmo presidente da República: é legislação em causa própria, que agride a ética, o direito e os princípios democráticos. Não bastasse isso tudo e o ministro da Justiça, que participou da elaboração dessa MP, foi colocado no Supremo Tribunal Federal e, poucos dias depois, já com a toga de juiz, participou do julgamento de ação que questionava a constitucionalidade da medida.
Mandando a ética às urtigas, o ministro, juiz em causa própria, não se deu por impedido e, pior ainda, na sessão de julgamento teve desempenho que, muito longe de lembrar o compromisso jurídico e a serenidade de um jurista, deixou bem evidente que o tribunal tem agora um "líder de governo" (o que, evidentemente, pressupõe a existência de liderados).
Contrariando toda lógica, o STF, pela maioria de seus membros, afirmou que a MP não restringiu de qualquer modo a independência dos juízes. É muito difícil encontrar a lógica dessa decisão, pois a medida foi editada para retirar dos juízes a liberdade de dar imediata proteção aos direitos ilegalmente ofendidos, julgando segundo sua consciência. Essa medida pretende coagi-los, obrigando-os a fazer de conta que não perceberam a inconstitucionalidade ou ilegalidade. Na realidade, para se manterem fiéis à Constituição os juízes terão que ignorar essa MP.
E é isso que deverão fazer aqueles para quem a Justiça vem antes das conveniências do governo. A firmeza dos juízes na defesa da independência do Judiciário é, mais do que nunca, necessária, para que a ordem jurídica brasileira não se converta, definitivamente, numa triste e grotesca caricatura.

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