São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997
Próximo Texto | Índice

Medo de Deus estressa crianças

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

O olhar de Deus, que tudo vê e castiga, estaria assustando as crianças mais do que imaginam os adultos. Três pesquisas em áreas urbanas mostram que o medo da punição divina é a principal fonte de estresse entre meninos e meninas de 7 a 10 anos.
Em um dos estudos, realizado numa escola de Campo Grande (MS), 70% das crianças manifestaram sinais de estresse relacionados ao medo de um castigo divino.
Em Atibaia (65 km ao norte de São Paulo), outra pesquisa com escolares mostrou que 37,5% tinham medo de Deus. Só o estresse decorrente da baixa auto-estima -como se sentir feio e incapaz- angustia tanto essas crianças quanto o medo do castigo de Deus.
Para meninos e meninas obesas, Deus parece ainda mais implacável. Um estudo feito em Santa Bárbara d'Oeste (150 km a noroeste de SP) mostrou que 17 de 20 crianças que estavam acima do peso tinham um medo excessivo de Deus.
As pesquisas foram realizadas por psicólogas orientadas por Marilda Novael Lipp, professora de pós-graduação da PUC de Campinas e diretora do Centro Psicológico de Controle do Stress.
A constatação de que Deus vem estressando as crianças é tão recente quanto a descoberta de que o estresse infantil existe. Em seu livro "Como Enfrentar o Stress Infantil" (Ícone Editora), de 1991, Marilda cita "as crenças religiosas que envolvem punição divina" como apenas mais uma fonte interna do estresse infantil.
'Em entrevistas com crianças, constatei que o temor de Deus tinha um peso muito maior." As pesquisas feitas nos anos seguintes vieram confirmar essa suspeita.
Não se trata apenas de medo, diz a especialista. Como qualquer outro estresse, o provocado por Deus é "um conjunto de reações que a pessoa tem quando um acontecimento a amedronta, irrita, excita ou a faz extremamente feliz". "Qualquer situação que desperte emoção forte, boa ou má, que exija mudanças no modo de agir, é uma fonte de estresse."
Na semana passada, a Folha ouviu crianças de uma escola pública da zona norte e de um colégio particular da região central. Todas concordaram que Deus enxerga tudo o que elas fazem, sabe tudo o que pensam e que pode castigá-las por erros que cometem.
"Deus cortou minha testa porque eu desobedeci meu pai e fui brincar com uma faca", contou Sebastião, 8. Para essas crianças, no entanto, o medo do "ladrão que aparece no escuro", o rigor e a cobrança dos pais e o excesso de atividades pareciam amedrontá-las mais que as ameaças divinas.
Para o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Menor e diretor de uma casa que abriga crianças com Aids, o Deus que assusta é equivocado. "O Deus que as crianças conhecem é aquele vivenciado pelos pais. Se são punitivos, passarão a imagem de um Deus punitivo."
O Deus que tudo vê e castiga passa a ser usado como um instrumento para se "moldar o comportamento" das crianças, diz a psicóloga Maria Helena Bromberg, da PUC de São Paulo.
As consequências virão mais tarde. Modelado pelo medo de Deus, "a criança se tornará um adulto perfeccionista, medíocre e inseguro", afirma Marilda Lipp.

LEIA MAIS nas págs. 2 e 3

Próximo Texto: Crianças relacionam Deus a azares diários
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.