São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997
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O último filme ao fim do dia

WALTER LIMA JÚNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

A viagem até Volta Grande, em Minas Gerais, é longa, e os motivos que nos levam podem até ser os mais tristes, mas, se temos bons companheiros, tudo pode se transformar em boa conversa, lembranças duradouras e até mesmo em brincadeiras.
Foi assim mesmo que ocorreu quando eu, David Neves, Carlos Augusto Calil e Walter Carvalho entramos numa Kombi para a viagem que nos levaria ao enterro de Humberto Mauro, sem saber que, naquele momento, estávamos nos tornando personagens de um filme que o próprio Mauro, invisível, dirigia.
Nossas conversas eram naturalmente sobre o patriarca da nossa cinematografia, suas anedotas, seus "bordões" clássicos, sua sabedoria. Viajávamos órfãos e herdeiros despreparados deste extraordinário brasileiro, pioneiro do cinema e do radioamador, discípulo de Roquette-Pinto, Griffith, Henry King, que, ao longo da vida, só nos trouxera beleza, saber, alegria, informação, sem nada cobrar por isso, pois -ao contrário dos "mestres" subsequentes de nosso cinema- Mauro era o mais substantivo de nossos cineastas, desconhecendo o marketing de si mesmo, ultrapassando, com isso, os limites do próprio umbigo com imensa curiosidade pelo mundo em torno, saboreando a convivência com sua gente, sua equipe, seu povo. Vangloriava-se de ser o autor do menor filme da história do cinema, o belo "Azulão", da série "Brasilianas": um plano só e estava tudo dito.
Chegamos a Volta Grande pouco depois do almoço e fomos direto a sua casa. Fora ali, na grande varanda com samambaias, que o vira pela última vez, acenando para o carro de Zequinha Mauro que me levava de volta ao Rio. Eu estivera ali, durante três dias, conversando sobre "Inocência", o projeto que ele não chegou a realizar e que "o cinema brasileiro lhe devia". Ele quase o fizera, mas, enquanto procurava a sua "Inocência", fora preterido por Luiz de Barros e, assim, perdera o filme. Restara-lhe da aventura de pré-produção os móveis que mandara fazer para o cenário da casa do "Pereira".
Agora eram os móveis de sua casa, e eu almocei naquela mesa maciça que teria sido um objeto de cena, caso Mauro tivesse assinado a segunda versão do romance de Taunay. Mostrou-me ainda desenhos dos personagens e contou-me o que havia transferido para Lima Barreto, quando este pensara em filmar "Inocência".
Boa parte das melhores idéias de Lima Barreto já existiam no tratamento cinematográfico de Humberto Mauro, e foi assim que, herdeiro desta chama criativa, resolvi dedicar-lhe o filme. Julgava justo que seu nome também aparecesse na tela. Soube depois -por intermédio de seu filho- que aquela fora a maior homenagem que ele recebera do cinema brasileiro. Guardo essa notícia até hoje como suprema honra.
Agora a varanda estava cheia de amigos, gente que se preparava para a missa de corpo presente que iria ser rezada bem em frente à casa, na pequena igreja erguida sobre a colina próxima. Não perdi muito tempo e fiz o meu próprio caminho até lá -uma suave subida interrompida por uma escadaria tosca de cimento, pela qual, num sobe-e-desce, a gurizada aguardava o momento solene.
Quando entrei na igreja -pequena nave repleta de gente moça e barulhenta-, me aproximei do caixão e, à curta distância, vi Humberto Mauro pela última vez. Do ângulo em que estava -e ali permaneci durante algum tempo- podia vê-lo quase na horizontal. Os pêlos que ainda crescem depois da morte cobriam seu rosto e suas mãos cruzadas de uma penugem branca que o santificava, como se um halo etéreo o envolvesse. Parecia menor do que realmente tinha sido e aparentava inalterada tranquilidade.
Sentei-me perto, entre os moços que ali estavam, e aguardei. Súbito, surgiu um homem alto, forte, avermelhado e com ar estrangeiro. Veio diretamente à frente do caixão e começou a conversar com o morto em voz alta. Reclamava do fato de Mauro não tê-lo esperado, que estava distante e não pudera acompanhá-lo no último minuto de vida. "Isso não se faz!", dizia bem alto, enquanto as lágrimas escorriam-lhe pelas bochechas rosadas. "Quem botou a cabeça dele virada para a porta?", reclamou. "Está errado, tem que ficar com a cabeça voltada para o altar-mor." Alguns ajudantes mudaram a posição do caixão, enquanto o homem alto tirava o paletó e enfiava a cabeça numa batina de padre.
Vestia-se ali mesmo, na frente de todos nós, molhando a roupa com suas lágrimas, reclamando do amigo apressado. Foi a missa de corpo presente mais emocionante a que já assisti. Terminada a cerimônia, os filhos e sobrinhos de Humberto Mauro, silenciosos, levantaram o caixão do cavalete em que se apoiava e o levaram para fora, descendo a escadaria até o ponto onde esperava um carrinho com rodas de bicicleta.
O destino era o pequeno cemitério não muito longe dali, e o cortejo caminhou lentamente debaixo de sol forte. Ao lado do caixão, mão posta sobre o carrinho, seguia um velho amigo de Humberto Mauro, de quem não recordo o nome ou apelido, um companheiro matinal de Mauro que gostava de contar anedotas ingênuas e imitar gente conhecida da cidade ou da televisão. Mauro dava sonoras gargalhadas com o talento imitador deste amigo humilde, uma espécie de bobo da cidade que todos tratavam como se fosse uma criança.
Pois bem, este homem agora seguia ao lado do amigo morto, empurrando também o carrinho que o levava à sepultura e gritava, imitando a voz do próprio Mauro, à perfeição: "Olha essa pedra aí! Cuidado! Vai virar! Para a esquerda! Cuidado! Devagar! Até mais ver, dona Fulana! Boa tarde, sicrano! Adeus, pessoal!". A imitação era perfeita, a voz absolutamente igual à de Humberto Mauro, nunca ele conseguira imitar tão bem, talvez até fosse a primeira vez que imitava o velho Mauro. A impressão que me deu -e disso não tive a menor dúvida- foi a de que estávamos dentro de um filme, no meio de uma sequência antológica de enterro, mais emocionante que o de "Miracolo a Milano", de De Sica, ou o de "The Sun Shines Bright", de Ford.
O enterro de Humberto Mauro era em tempo real, sem cortes. A luz era extraordinária, pois o sol já preparava seu esconderijo atrás das montanhas e estendia seu fulgor dourado pelas laterais, desenhando contornos definitivos nos rostos, casas, árvores, estrada e, logo adiante, nas cruzes brancas que se erguiam do pequeno cemitério. E o homem continuava: "Ah, não! Não quero saber de gaveta!... É melhor me botar no chão!". Os parentes começaram a discutir sobre essas dificuldades. Realmente, Mauro não gostaria de ser "engavetado". A voz de Mauro advertia: "O quê? Vocês vão me deixar num segundo andar?".
Vi Waltinho Carvalho clicando suas fotos; chorávamos e ríamos ao mesmo tempo enquanto o sol se escondia de vez. A voz de Mauro súbito calou-se e um silêncio tranquilo nos devolveu à realidade. Mas "o filme" parecia não ter fim. Era exatamente a hora mágica -o alumbramento que anunciava o fim definitivo do dia. O alaranjado do céu foi ganhando em contraste até que tudo era silhueta. Sombras chinesas, sombras mineiras que se estenderam durante toda a nossa volta ao Rio.

Walter Lima Jr. é cineasta, diretor de "Menino de Engenho", "A Lira do Delírio" e "Inocência", entre outros.

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