São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997
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A armadilha das aparências

FERNÃO RAMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nem tudo que reluz brilha. E nem tudo o que brilha reflete luz. Em "A Estrada Perdida", nem tudo o que parece é, e o que é também já deixou de parecer. "Acho que não existem coisas como más coincidências", nos diz o policial na penúltima frase pronunciada no filme. Onde não há coincidências, há causas. As várias camadas ficcionais que se esboçam e se esvaem durante o filme devem, então, poder ser explicadas. Mas a fala do policial é apenas mais uma ironia.
As coincidências existem. O gratuito predomina na intriga. Os personagens não se delineiam por meio da identidade orgânica à qual estamos habituados. Nem mesmo em suas entrevistas David Lynch nos dispõe em fila os universos que pôs em contato por meio de tênues fios oníricos. Resta a frustração para quem está acostumado à satisfação das expectativas criadas e resolvidas pela narrativa clássica. Não há laço, retorno, apenas sensações em torno de movediças situações dramáticas. E, dentro delas, o contraste, figura lyncheana por excelência.
Encontramos, em Lynch, um autor que domina com maestria o ritmo cinematográfico. Na realidade, trata-se de uma manipulação da imagem que atinge não só a disposição dos planos, mas sua própria matéria plástica. Lynch utiliza de maneira reiterada, em "A Estrada Perdida" (e também em outros filmes), o acelerado, a câmera lenta, a imagem fora de foco, o primeiríssimo plano, diversos tipos de fusões, angulações acentuadas, planos negros, planos com luz estourada, enfim, diversos procedimentos que dilatam a plástica imagética de maneira que, sem muito esforço, esta tende à abstração.
A esta figuração sobrepõe-se o uso exótico da música e dos ruídos, sempre um campo que recebe a atenção de Lynch que, em geral, participa pessoalmente da mixagem e do planejamento sonoro de seus filmes. O fundo sonoro bem peculiar vem, então, compor um estilo imagético em que as formas, em constante condensação e deslocamento, adquirem uma aparência que parece líquida em sua fluidez.
Apesar das diferenças evidentes, podemos sentir aqui uma aproximação com o universo imagético de Andrei Tarkovsky, nesta maneira de dar às formas, por meio do ritmo e do som, como que um mistério submarino.
"A Estrada Perdida" é o filme da maturidade de David Lynch. O filme em que o autor retorna, de forma consciente, ao veio mais fértil de sua carreira, delineado em "Veludo Azul" (1986), "Eraserhead" (1976) e presente no último capítulo de "Twin Peaks" e nos curtas iniciais.
Na realidade, Lynch, como diversos autores de personalidade forte no cinema, oscila entre compromissos mais comerciais ("O Homem Elefante", "Duna") e produções nas quais pode expandir mais livremente seu estilo. Em "Duna" (seu terceiro longa, de 1984) podemos sentir, de maneira mais intensa, o dilema do ritmo, que é essencial para a estilística de Lynch. Trabalhando inserido na tradição do classicismo hollywoodiano, Lynch encontra, muitas vezes, dificuldades para domar a intriga pelo ritmo.
Em "Veludo Azul" (1986), o que já foi chamado de "lynchtown" se esboça definitivamente, com a figuração dos personagens pacatos da classe média americana e o horror submerso nas aparentes águas plácidas da normalidade. Aqui, a visualidade que levanta vôo em "A Estrada Perdida" já está presente em toda a sua intensidade.
Em seguida a "Veludo Azul" (intervalo intermeado por uma obra em vídeo, em 1988, "Le Cowboy et le Frenchman", de 22 minutos), Lynch filma, em 1989, "Twin Peaks", a série televisiva de 29 capítulos, dirigindo o vídeo-piloto, os capítulos 1, 2, 8, 9, 14 e 29, além do roteiro e da supervisão da série como um todo.
Neste formato, Lynch encontra o espaço para desenvolver a trama que havia faltado em "Duna". O cenário da típica e pacata "lynchtown" agora está completo em todo seu horizonte.
Ainda em 1989, dirige a "continuação" cinematográfica de "Twin Peaks", "Os Últimos Dias de Laura Palmer", em que nos são narrados os eventos que antecederam a série televisiva. Segue "Coração Selvagem" (1990), seu último longa antes de "A Estrada Perdida" (entre 90 e 95, Lynch realiza alguns trabalhos em vídeo, como "Industrial Symphony Nº 1", "American Chronicles", "Dangerous" -clipe para Michael Jackson-, "Hotel Room" e "On the Air").
Dentro desta carreira coerente e constante em seus temas, vislumbra-se nitidamente a figura de um autor. Evidentemente, não um autor isolado, no sentido clássico do termo, mas um epicentro artístico que, por meio de sua sensibilidade pessoal, coordena e, de certa maneira, conforma, dá o tom para a expressão de outras personalidades artísticas em um trabalho de equipe.
Para além dos "dinossauros" que começaram sua carreira nos anos 60 e 70 (Spielberg, Lucas, Coppola, Scorsese), Lynch (juntamente com Tarantino) compõe o melhor da grande tradição autoral da narrativa clássica em sua versão hollywoodiana. Tradição autoral que, inicialmente constelada pela crítica francesa dos anos 50, teve, mais recentemente, uma abordagem desconfiada por parte da crítica de recorte pós-estruturalista.
Esta abordagem, buscando diluir, junto com a noção de sujeito, a dimensão da "autoria", acabou por dar origem a uma crítica repetitiva em seus temas, que parece se regozijar diante da impossibilidade da análise fílmica. A obra de arte acaba reduzida a um eixo vazio em que brilham metáforas obscuras. Resultados parcos, principalmente se comparados aos obtidos pela análise que tem a noção de autor em seu âmago.
É neste sentido que a obra de Lynch deve ser interpretada no horizonte do cinema americano contemporâneo. Ao mesmo tempo em que passa ao largo dos batidos temas pós-modernos que giram em torno da elegia do urbano, também não dialoga com o horizonte da má consciência étnico-racial, própria do universo do "politicamente correto" e dos "estudos culturais". Define-se como obra singular, autoral, marcada por um universo pessoal e pela contemporaneidade expressa em seu diálogo implícito e brincalhão com as estruturas do classicismo hollywoodiano. Existe aqui (como também na obra de Tarantino) um corte e um distanciamento, em relação à enunciação anterior, que conformou um gênero, da qual nos aproximamos com fascínio, ironia e, no caso de Lynch, um inegável mal-estar.

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