São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 1997
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Riefenstahl continua um problema

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Leni Riefenstahl, autora de "O Triunfo da Vontade", ainda é um problema. Como situá-la? É artista ou propagandista; nazista ou testemunha de seu tempo?
Cada nova visão do "Triunfo" embaralha as cartas. Esse documentário não é, em princípio, mais do que o registro filmado do congresso de 1934, em Nuremberg, onde se reuniram os líderes nazistas e seus adeptos.
Basta a introdução, no entanto, para o espectador ser jogado nas nuvens. É de lá, do céu, que desce o Führer. E, só de ver a conjunção de música, paisagens aéreas (nuvens, cidade) e pessoas articuladas por Riefenstahl, dá para entender (não justificar) a adesão quase demente dos alemães a seu líder.
Nesse instante, "O Triunfo da Vontade" tem o mérito de ser as duas coisas: propaganda e registro de um momento. E esse registro contém um passado remoto e grandioso, um passado imediato de miséria, um presente que exorciza a humilhação recente e prepara um futuro radioso.
Tudo isso é propaganda, sem dúvida, mas também está no rosto de cada um.
O que vem a seguir é menos interessante, mas não menos intrigante. Desfiles, discursos, bandeiras. Aos poucos, percebe-se que a guerra já está inscrita no renascimento prometido por Hitler. Cada gesto, cada plano, evoca e reproduz a disciplina militar.
E a estética de Riefenstahl é nazista. A beleza dos planos baixos não exalta o homem -essa instituição falível-, mas a "perfeição" do homem. Perfeição física, pois o nazismo recalcava as imperfeições, dando-as como indesejável consequência da miscigenação.
Os planos de massa criam a idéia de unidade popular, superando a subjetividade, o individualismo. Até a arquitetura majestosa submete todos à vontade maior, esmagadora, do Reich.
É precisamente por realizar o ideal estético nazista -de beleza impessoal- que o "Triunfo" só se deixa apreender como propaganda. A forma, no caso, é a mensagem. Mas, justamente por representar o máximo dessa arte tão miúda, é difícil vê-la como artista.
Até hoje, a realizadora se defende e diz que nunca foi nazista. É possível. Mas o seu sentimento era. Talvez ela fosse -como quer- uma mulher que não entendia de política. Mas é por isso mesmo seu filme exprime tão bem a Alemanha de 34, do alvorecer do Reich.
Riefenstahl é um paradoxo. Uma grande cineasta -qualquer um teria o que aprender com ela-, mas não uma artista. A beleza que, inegavelmente, era capaz de criar só faz sentido no quadro referencial nazista -uma leitura muito específica do romantismo.
Por tudo isso, "O Triunfo da Vontade" interessa pelo talento, nunca pelo pensamento. Fascina como propaganda, não como arte. Importa pelo registro da vontade coletiva, não como questionamento das coisas.
É um documento precioso, que mostra a identificação do alemão com o novo sistema. Mas, sobretudo, mostra como o processo de identificação acaba por absorver o talento da cineasta. O pecado capital de Riefenstahl talvez seja representar tão bem seu tempo.

Filme: O Triunfo da Vontade
Produção: Alemanha, 1934
Direção: Leni Riefenstahl
Lançamento: Reserva Especial (tel. 011/605-6101)

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