São Paulo, terça-feira, 29 de abril de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Assédio só é crime quando o homem é feio"

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Essa frase é de um anúncio de moda masculina, veiculado em jornais (24/4 na Ilustrada) pelas lojas Renner (moda, decoração e beleza). O anúncio apresenta fotos de um homem branco jovem, em elegantes terno e gravata, gel no cabelo, tentando seduzir uma moça.
A reação do homem que estava comigo ao ver o anúncio foi soltar uma sonora gargalhada -reação idêntica à minha, com a diferença de um balançar de cabeça, indício de minha frouxa indignação.
Espantosa essa capacidade brasileira de transformar em piada o que se trata tão seriamente em outros países -fosse nos Estados Unidos ou na Alemanha, a loja seria motivo de boicote feminista, com direito a urros e passeata na porta.
Mas no Brasil -dado o bom humor, a permeabilidade e a tolerância característicos do caráter social ou da personalidade típica do brasileiro, será?- a esculhambação vira regra. Afinal, é melhor abrir o jornal com uma gargalhada logo de manhã ou vestir a camisa em defesa da "causa" e sair para uma passeata?
Brasileiro tem preguiça de protestar (ou não tem costume). Daí o ambiente favorável para que a propaganda use e abuse da sua função deformativa em relação à consciência das pessoas. Esse anúncio não só é um insulto às mulheres como um perigoso incentivo ao assédio sexual e suas mais drásticas consequências.
O que ele diz é: vista-se bem, com terno, camisa e gravata da loja, e fique à vontade para assediar, "cantar", seduzir e até estuprar -se você estiver bonito, não será nem rejeitado nem tido como criminoso.
Função deformativa é isso -é o perverso exercício de divulgação de valores equivocados como se fossem positivos; é a direção manipuladora e tendenciosa da consciência das pessoas. O simples fato de se tratar de um anúncio de roupas já serve para reforçar sentimentos de inferioridade, marginalidade e feiúra.
Em diversas sociedades, as roupas são os símbolos externos da potência espiritual, a forma visível do ser interior. São também reveladoras da parte da personalidade aberta a influências e modas, bem como de seu desejo de exercer influência. O anúncio pode ser lido, em última instância, como: "O hábito faz, sim, o sucesso e a impunidade do estuprador".
Não bastasse tudo isso, a propaganda em questão fortalece a imagem estereotipada da mulher como "passivo objeto do desejo patriarcal", como diria a feminista americana Susan Bordo. E essa "objetificação da mulher" -diria a ainda mais radical Andrea Dworkin- pode muito bem ser o mais destrutivo aspecto da hierarquia de gêneros, em detrimento do feminino.
Mas aí -perguntam os cínicos-, a propaganda deve funcionar como uma "instituição moral" ou ela é um espelho da sociedade? Basta olhar o anúncio de TV da Parmalat, com crianças vestidas de bichinhos. Há uma criança negra entre várias brancas. Ela aparece como que por obrigação, por meio segundo, de forma descaradamente discriminatória. Isso não é um crime? Ou isso é o espelho do Brasil?

E-mail mfelinto@uol.com.br

Texto Anterior: Usinas serão reativadas
Próximo Texto: Novo hábito pode reduzir 15% do consumo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.