São Paulo, terça-feira, 29 de abril de 1997
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Vitória cultural do governo FHC pode acabar

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O mundo está vivendo uma nova guerra mundial. Desta vez, sem sangue. É a guerra pelo controle da informação e, por consequência, de suas vertentes: comunicação e cultura. Os países ricos investem mais nessa área do que em qualquer outra. Hoje, o cinema e a televisão americanos não são apenas veículos de venda de filmes e de show, mas de produtos nacionais e de modos de viver. O mundo veste jeans e bebe Coca-Cola assim como se grudou no neoliberalismo por causa do audiovisual americano.
O lastro desta globalização cultural via satélites e fibras óticas é o cinema, assim como o lastro da economia é o dólar. Os países sérios que já perceberam isso tomam suas providências. A França, pioneira na defesa do produto cultural nacional, mantém o mais caro e sofisticado programa de ajuda à produção local. Alemanha, Inglaterra e outros já acordaram em defesa de suas imagens. Na América Latina -e no Mercosul-, a Argentina é um ótimo exemplo de medidas criativas que envolvem Estado, TV e publicidade.
Precisamos decidir de uma vez por todas: nesta feira global, queremos ir como compradores apenas ou também vamos vender nossos produtos?
A renascença Se resolvemos ter cara e imagem próprias, o Estado brasileiro precisa declarar o cinema uma propriedade. O governo FHC já avançou muito nesse sentido, com a Lei Rouanet aperfeiçoada e desburocratizada (era um labirinto de labirintos) e com a Lei do Audiovisual. O resultado foi imediato: mergulhados no nada em 94, fizemos só cinco filmes. Já em 95, passamos para 12, em 96, para 35 e certamente teremos mais de 50 em 97.
O Brasil voltou a falar em cinema. "Carlota Joaquina", "O Quatrilho", "Tieta", "Pequeno Dicionário Amoroso" já são conversas de bar, já está na mídia toda do país a certeza de que o cinema está renascendo na era FHC.
Em pouco tempo, no mundo externo (o tal Primeiro Mundo onde conseguimos custosamente botar nossos sapatos e nosso suco de laranja), tivemos, num rápido instante, a indicação para o Oscar de "O Quatrilho", os prêmios do filme "Sertão de Memórias", de "Um Céu de Estrelas", de "O Baile Perfumado", de "Como Nascem os Anjos", o lançamento internacional bem-sucedido de "Tieta", as vendas para o mundo inteiro de "O Que É Isto, Companheiro?", os filmes em produção como "Xangô de Baker Street", "Foolish Heart" e tantos outros, os próximos sucessos de obras maravilhosas já prontas como "A Ostra e o Vento", "Bocage" e "Guerra de Canudos".
Esses filmes, em alguns meses, fizeram mais pelo Brasil do que 20 campanhas da Embratur vendendo bunda de mulata para apagar a prostituição infantil e os massacres semanais. Em poucos meses. As TVs pagas já estão produzindo cinema para consumo próprio. As grandes redes se preparam para produzir. Uma nova "conspiração" de jovens cineastas já luta por nova linguagem e linhagem de filmes. Em suma, a tal "renascença" veio em poucos meses. Estamos em pleno caminho do sucesso. Mas... aí, quando tudo vai bem, brasileiro não gosta.
A arte de fracassar De repente, começam a aparecer na imprensa os primeiros sintomas dessa desconfortável vitória. Quem é o inimigo? São os imperialistas? Neste momento, não. São os gringos? Não. Os inimigos são alguns cafetões que vivem à custa do mecenato picareta que eles chamam de "marketing" cultural, despachantes malandros de artistas desamparados. Esses são os inimigos espertos. Vivem bem à custa da miséria dos artistas.
Os outros inimigos, os ingênuos, são os explorados por eles. São os defensores da cultura "portuguesa", aquela visão arcaica que acha que artista tem de ser fraquinho, protegidinho, fora do mercado, amparado pelo Estado apenas com verbas de mecenato (o Estado como mamãe e não como estimulador de indústrias).
Contra a visão moderna de indústria do audiovisual, começam a falar artistas de outras áreas -teatro, dança, literatura e outras musas. Os artistas começam a estranhar nosso "renascimento" precoce ainda, como se fôssemos os pós-modernos "destruidores" dos velhos valores artesanais da arte "pobre e humilde". "Cinema tem, nós também queremos".
Além de terem lutado para colocar tetos de captação pela Lei do Audiovisual, querem agora nos tirar a Lei Rouanet. E, segundo pressinto, emocionando o coração do ministro Francisco Weffort que, depois de nos dar munição e nos mandar para a batalha do audiovisual, pode nos tirar a munição e nos deixar sem trincheiras.
A mania corporativa da isonomia pauta essas lágrimas "poéticas". É claro. indiscutível, óbvio, justo, que o teatro e outras artes tenham amparo e estímulo, mas não à custa da destruição do cinema emergente, como se nós fôssemos um bando de privilegiados, logo nós, que tivemos sete anos de Jó raspando ferida, nós que não temos acesso às nossas telas ocupadas pelos rambos e reis leões, nós que perdemos uma infra-estrutura técnica, depois de anos de vácuo, de nada, logo nós que filmamos por uma espécie de masoquismo artístico militante.
É preciso não ter medo de dizer que cinema, teatro e outras artes são coisas muito diferentes e que cinema é muito mais caro, mais complicado, que depende de distribuidores, exibidores, tecnologia sempre mudando, insumos e infernos que os artistas mais "livres" nem sabem o que são, aliás, graças a Deus para eles. Todo mundo tem de andar calçado (os que podem comprar), mas só um Ministério da Indústria louco faria a comparação entre a fabricação de sapatos e a de aviões a jato.
Duvido que o governo um dia trate isonomicamente a indústria de petróleo e a de biscoitos finos. Se a massa ainda vai comer os finos biscoitos que fabricaremos, parodiando Oswald, é porque esses biscoitos vão cair como subprodutos de uma coisa pesada, meio mafiosa e "escrota" no mundo todo, que é o cinema. E não adianta se horrorizar -é assim mesmo que é: o cinema é a ganga "pura" que sobra dos diamantes falsos do mercado. Só uma mentalidade do século 19, típica de políticos desinformados, poderia agir desse modo, como se o cinema fosse Salão de Belas Artes.
Essa insegurança já está permeando os possíveis investidores pelas leis Rouanet e do Audiovisual. Será que vai vencer a mentalidade portuguesa de cultura, que rima com sepultura e brochura? Será que o governo FHC vai destruir sua maior vitória cultural -o ressurgimento glorioso do cinema brasileiro, aqui e no mundo? Será que vai vencer a colonial síndrome brasileira de destruir o que está dando certo, este velho amor à derrota? Suspense. Veremos brevemente em lançamento nacional.

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