São Paulo, quarta-feira, 30 de abril de 1997
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Automóvel, nivelador social?

MIGUEL JORGE

Serão sempre difíceis as tentativas de avaliar crescimento econômico, nível de consumo e padrão tecnológico a partir de números de produção industrial num país com as dimensões e desigualdades do Brasil. Há muitos investimentos em prazos relativamente curtos, muitos setores modernizam-se rapidamente e a estabilização da moeda consolida-se.
Um dos setores que tem mostrado vigor, reagindo positivamente às profundas mudanças pelas quais o país tem passado, é o mercado de automóveis.
Em março, por exemplo, os carros populares atingiram recorde de vendas, com 73 mil unidades, ou 61,1% do mercado. Com isso, o total de automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus cresceu 12% nesse mês contra março de 96, novo recorde.
Mais eficiência e produtividade, resultados da racionalização e modernização do setor, são importantes nesse processo, pois trazem ganhos para toda a cadeia produtiva. Mas há outros fatores, também fundamentais, como os sinais de segurança que a economia oferecerá proximamente e os estímulos que o setor produtivo receberá do quadro macroeconômico -que, no fundo, representam a garantia de que seus investimentos terão continuidade.
Hoje, o que se pode afirmar é que, com a estabilização econômica, que ainda entrará na fase da reforma do Estado, o acesso a bens de consumo -de automóveis a eletroeletrônicos- estende-se a milhões de novos consumidores, o que, por si só, é a chave para uma vida melhor.
Quem ganha cerca de R$ 700 ou R$ 800 por mês já pode comprar um carro usado por poucos milhares de reais em 36 prestações; quem vendeu esse carro sobe alguns degraus na escada e compra outro mais novo, e assim por diante, até chegar ao carro zero, vendido em até 48 meses. Esse processo, saudável sob todos os aspectos, repete-se para outros bens de consumo.
Recentemente, anunciou-se que a capital de São Paulo tem um carro para cada dois habitantes, mais que Tóquio, Paris e Nova York (nessa mesma São Paulo, há também um médico para 400 habitantes, relação melhor que na Suíça, onde ninguém morre em fila de hospital por falta de cuidados médicos).
Pelo levantamento, a cidade tem 4,6 milhões de carros para 9,8 milhões de pessoas, números que podem ser enganadores e devem ser mais bem analisados.
Em 1994, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, o país tinha 14,2 milhões de veículos para 150 milhões de pessoas, ou um carro para 10,9 habitantes. De lá para cá, somaram-se mais uns 3 milhões de veículos a essa frota, da qual se desconta certo número de veículos roubados, destruídos, apreendidos etc.
Claro que, no Brasil, o automóvel ainda está longe de ser um nivelador democrático de renda, como no Primeiro Mundo, onde há dezenas de anos a população pode comprar seu carro.
Por isso, números como os da relação de automóveis/habitantes na capital paulista devem ser bem avaliados: fala-se aqui de área com um dos mais altos índices de renda "per capita" do país, ligada ao mundo globalizado por celulares, fibras óticas, fax e muitos outros equipamentos ainda distantes da maioria da população brasileira.
Isso é o que faz com que se entenda cada vez menos a falta de vontade política dos governantes dos grandes centros metropolitanos na definição de uma política global de transportes que atenda às necessidades de sua população, independentemente da relação habitante/carro que apresentem.
Ou alguém entende, por exemplo, como pode a cidade de São Paulo ter só 40 quilômetros de metrô, a maior parte subterrâneo, o mais caro de todos? Ou como centenas de quilômetros de linhas de trens suburbanos que cortam toda a cidade continuam oferecendo, no máximo, um péssimo serviço aos usuários, quando poderiam se transformar rapidamente em novas linhas de metrô? Ou como há 30 anos se discute a idéia de um anel rodoviário em torno da maior cidade da América Latina?
Certamente, uma melhor distribuição de renda, a reforma agrária e mais justiça social, por exemplo, estão entre aqueles desafios que, mesmo urgentes, dependem de bem mais do que só construir linhas de metrô. Para sua solução, paradoxalmente, a indústria, incluída a automobilística, precisará continuar produzindo mais para que a população tenha mais emprego e mais renda, um dos caminhos para alcançar boa parte de nossos mais sérios desafios.

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