São Paulo, sábado, 3 de maio de 1997
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Dinastia Traverso retrata Cannes

JEAN-MICHEL FRODON SERGE TOUBIANA
DO "LE MONDE"

Cannes e imagens, imagens de Cannes -parece evidente. E o perigo é esse mesmo, quando se trata de comemorar o cinquentenário com um número construído em torno da foto.
Desde que o Festival de Cannes se impôs como a mais importante manifestação cinematográfica mundial, acolheu incontáveis imagens dos milhares de filmes apresentados e produziu quase o mesmo tanto de imagens próprias.
Em pouco tempo o ritual do festival engendrou a monotonia de suas representações e, logo depois, passou a inflar a uniformidade. Milhões de fotos, mas poucas imagens. Por isso, em meio a todas as fontes possíveis, "Le Monde" escolheu os arquivos da família Traverso, fazendo uma seleção da imensa seleção de sua obra editada pelos "Cahiers du Cinéma" no livro "Cannes Cinéma".
Perguntar o porquê dessas fotos leva à pergunta: quem são os Traverso? Artesãos, uma família (ou dinastia) natural de Cannes. Originária do vale do Tende, no lado italiano, a família Traverso se transferiu para Cannes em 1850. Sua primeira inscrição no registro de profissões da cidade data de 1919. De lá para cá, quatro gerações se sucederam, sempre no mesmo endereço da rue de Bône.
Seus membros fotografavam casamentos, primeiras comunhões, batismos, cerimônias oficiais. Nos anos 30, Auguste Traverso foi testemunha privilegiada da vida mundana que caracterizava Cannes no pré-guerra.
Quando, em 1939, foi organizada a primeira edição do festival, Auguste foi à estação receber o presidente de honra Louis Lumière. A realização do evento foi impedida pela declaração de guerra.
Mas a foto da chegada de Louis Lumière foi o clichê fundador da galeria de imagens futuras do festival, na qual a família Traverso iria ocupar um lugar próprio.
Os Traverso não são "paparazzi". À diferença de quase todos os outros criadores de imagens, estão em casa em Cannes, observam os visitantes que vêm até eles. Fizeram a crônica de suas transformações, e assim se constituiu um arquivo extraordinário.
Na abertura do primeiro festival, em 20 de setembro de 1946, Henri Traverso, neto de Auguste, com apenas 16 anos, retomou, ao lado de sua tia Germaine, o empreendimento lançado pelo avô.
Voltou à estação de Cannes para receber atores, cineastas, autoridades. Era preciso registrar sua alegria com a volta da paz, divulgar os encantos turísticos da Côte d'Azur, e ainda reafirmar a grandeza da indústria cinematográfica.
Pouco a pouco o festival inventou seus ritos próprios, num espírito "de aldeia" que hoje já deixou de existir. Nos anos 50, as vedetes passaram a ser mais internacionais: o charme descontraído de Robert Mitchum, a simplicidade de Liz Taylor, Orson Welles como príncipe em exílio do cinema, todas poses captadas pelos Traverso.
As primeiras fotos de Brigitte Bardot na praia provocam uma explosão. A multidão se torna mais visível, o público cerca as estrelas.
As fotos de Henri Traverso geram uma sensação de leveza, num ambiente em que a sessão de cinema à noite não passa de ponto culminante dos dias dedicados a uma espécie de turismo luxuoso e bem-comportado, mais do que à arte e ao comércio. As noites são passadas em lautas recepções oferecidas pelos países participantes.
Nos anos 60, surgem novos rostos e também uma nova idéia do cinema, mais ambiciosa e mais conflituosa. O público enlouquece, os jornalistas se multiplicam, a pressão aumenta. Quando Bardot retorna a Cannes em 1967, é recebida com histeria, uma situação que beira a catástrofe. A televisão começa a se adiantar aos jornais, às fotos... e ao próprio cinema.
Implanta-se uma organização mais rígida, os fotógrafos só têm direito a poses organizadas e marcadas com antecedência, as estrelas se escondem. É a inversão da economia do estrelato, no momento em que a imagem é tudo: de agora em diante, quanto mais se é famoso, menos se pode ser visto. Em "seu lugar", central e depois periférico, com constância e humildade, os Traverso terão registrado a lenta e irresistível evolução do Festival de Cannes.

Tradução de Clara Allain.

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