São Paulo, sábado, 3 de maio de 1997
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Bonachão, não aparentava currículo raro

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Exilado na Suíça, em 1971, Paulo Freire relatou um diálogo que tivera, meses antes, com um velho índio peruano, a quem conheceu numa turma de alfabetização.
"O que é uma montanha?", perguntou-lhe o educador.
"Uma montanha é um homem que dá nome a uma montanha", respondeu o índio.
"E se o homem não estiver lá?", insistiu. A resposta:
"Então não será uma montanha, porque não haverá ninguém para chamá-la pelo nome."
Na época, Freire qualificou a lição contida na resposta como uma síntese de tudo o que ele próprio, como acadêmico e pedagogo militante, havia acumulado em anos de rua e de biblioteca.
Vinda dele, não caberiam dúvidas sobre a sinceridade de sua admiração pelo índio do altiplano.
Paulo Freire foi sobretudo um homem humilde, para quem qualquer conhecimento que lhe chegasse de alguém mais humilde se tornava uma nova comprovação de suas teorias. E seus hábitos eram também singelos. Gostava de comer banana frita, galinha de cabidela e peixe ao leite de coco.
Caneta hidrográfica
Escreveu seus livros à mão, usando lápis ou caneta hidrográfica. Gostava de cães e passarinhos. Tinha um jeito bonachão, acentuado pela fala vagarosa e pelo grisalho de suas barbas.
Não aparentava, em definitivo, o currículo que bem poucos brasileiros poderão um dia reunir.
Ainda vivo, virou nome de nove escolas, tornou-se cidadão honorário de nove cidades, recebeu seis prêmios internacionais e batizou três cátedras universitárias.
Foi doutor "honoris causa" por 28 universidades, nome de rua em Itabuna (BA) e de 26 centros de estudos e documentação em questões educacionais, da Itália ao Chile, da Bélgica aos Estados Unidos.
Nunca foi um poderoso bajulado por homenagens e comendas. Seu nome cresceu, no entanto, num circuito mundial de contorno ideológico definido, o das esquerdas, que possuíam escolas estéticas e partidos, mas não dispunham ainda de uma teoria pedagógica acessível.
"Ele não via a educação simplesmente como meio para dominar os padrões acadêmicos de escolarização, ou para profissionalizar-se. Falava da necessidade de se estimular o povo a participar do seu processo de emersão na vida pública", escreveu recentemente sua segunda mulher, a historiadora Ana Maria Araújo Freire.
Paulo Reglus Neves Freire nasceu em Recife, em 19 de setembro de 1921. Sua família, de classe média, empobreceu com a crise de 1929. Precisou trocar a casa confortável do bairro da Casa Amarela por uma outra em Jaboatão, cidade bem mais modesta da periferia recifense. Perdeu o pai aos 13 anos.
Experimentou a pobreza, a nutrição insuficiente, e se alfabetizou com uma professora, Eunice Vasconcelos, que -narrou ele muitos anos depois- ensinou-o a respeitar "a maneira bonita" com que se exprimem as pessoas do povo, mesmo ao eventualmente cometerem erros gramaticais.
Foi bolsista de um ginásio particular, o Osvaldo Cruz, onde conheceu Elza Maia Costa Oliveira, sua primeira mulher e mãe de seus dois filhos e três filhas. Lecionou português a partir dos 17 anos.
Formou-se em direito pela atual Universidade Federal de Pernambuco. Entre 1947 e 1954, foi diretor do setor de Educação e Cultura do Sesi (Serviço Social da Indústria), primeiro contato seu com a educação de adultos. Nos três anos seguintes, tornou-se superintendente daquela instituição.
Em 1956, integra o Conselho Consultivo de Educação de Recife, e, em 1961, é nomeado diretor da Divisão de Cultura da Secretaria Municipal de Educação. Já lecionava filosofia da educação, disciplina pela qual se doutorou.
Em 1958, em congresso sobre a educação de adultos, no Rio, sistematizaria seu método de alfabetização, em que a consciência política e o aprendizado da escrita se integravam na mesma moldura.
O período é de intensa fermentação doutrinária. A esquerda brasileira conquista espaço institucional. Miguel Arraes, já então governador de Pernambuco, nomeia Paulo Freire para o Conselho Estadual de Educação. Ele é um dos co-fundadores do Movimento de Cultura Popular de Recife. Em 1964, o presidente João Goulart lhe entrega o Programa Nacional de Alfabetização.
Método
O método Paulo Freire faz do aprendizado um ato político, e reconhece no analfabeto um produtor específico de cultura. Foi o que bastou para que seu autor fosse estigmatizado pelos "conservadores", ou então admirado pelos defensores das reformas de base ou de mudanças bem mais radicais na sociedade brasileira. Não havia então, em definitivo, meio-termo.
O movimento militar de 1º de abril o surpreende em Brasília, onde permanece escondido por um mês. Segue para Recife, onde é preso e fica 75 dias num quartel. Transferido para o Rio, refugia-se na embaixada da Bolívia. Obtém salvo-conduto para La Paz, onde um golpe militar o leva a se refugiar no Chile (1964-1969).
Em 1969, instala-se nos Estados Unidos, como consultor do Conselho Mundial das Igrejas. Leciona por um ano, como professor convidado, na Universidade de Harvard. No ano seguinte, muda-se com a família para Genebra, onde permanecerá até a promulgação, no Brasil, da Lei da Anistia (1979).
O Chile e a Suíça são bases a partir das quais Freire percorre o mundo. Seu nome cresce internacionalmente em seminários e congressos de educadores.
Os anos 70 são profícuos na difusão de idéias terceiro-mundistas. Bélgica, Holanda e Suécia são três dos países europeus que patrocinam programas coordenados ou assessorados, na África e na Ásia, pelo autor de "Pedagogia do Oprimido", que, com todas suas traduções, vendeu até hoje o prodígio meio milhão de exemplares.
Ao retornar em definitivo ao Brasil, instala-se em São Paulo. Professor da PUC-SP e a seguir da Unicamp, foi secretário paulistano da Educação, entre janeiro de 1989 e maio de 1991 (gestão Erundina).
Nunca deixou de escrever. Ao morrer, não era mais um dos modismos a que foi injustamente reduzido, no passado, por companheiros seus de ideologia. Encerrou uma biografia bem mais rica que sua condição de "notável" no quadro de militante do PT.

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