São Paulo, domingo, 4 de maio de 1997
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Longe do inferno de exames

MARIA LÚCIA GARCIA PALLARES-BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Andando de bicicleta pelo jardim, algumas meninas se aproximam e Carman, uma extrovertida e bonita inglesinha, me apresenta a suas companheiras: Jeong-Hyon, da Coréia, e Christine, de Formosa, ambas de 10 anos. Imagino que deva estar adivinhando minha curiosidade -que deve ser a de tantos visitantes-, pois vai logo dizendo que escolheram, sim, não ir à aula e brincar um pouco ao ar livre. Aliás, o solzinho que acabava de aparecer era mesmo bem convidativo! Essas crianças estão exatamente na faixa conhecida em Summerhill como a "gangster age", devido a longa experiência ter mostrado que é entre os 10 e 12 anos que elas são mais arredias às atividades de estudo e mais afeitas a traquinagens.
O toque de um sinal anuncia a hora do almoço e logo vários alunos -entre 7 e 12 anos-, saindo das aulas, aparecem pelo jardim. O fato mais intrigante e o que mais salta à vista é o número de asiáticos dentre eles. Depois confirmo que já desde os anos 80 os japoneses têm, normalmente, composto um terço dos alunos de Summerhill, mas que nos últimos anos coreanos e chineses de Taiwan têm completado o que poderíamos chamar de "invasão amarela". Hoje, dentre seus alunos, 8 vêm de Formosa, 4 da Coréia, 17 do Japão, 16 da Alemanha, 1 da Suíça e 22 do Reino Unido.
Se houve algum brasileiro ou sul-americano no passado, não parece haver registro disso. O que está bem fresco na memória da escola é a passagem recente de Alice, uma brasileira, que deixou entre alguns alunos a impressão de riqueza e ostentação. "Tem muita gente lá tão rica como ela e com casa de 60 cômodos?", perguntou-me Tom. "Ela não se ajustava à escola, estava sempre a dar rios de dinheiro, e teve que ir embora", disse Carman.
A presença maciça de japoneses nos últimos 17 anos é algo curioso e irônico: do Japão são os últimos "invasores" de Summerhill, mas foi lá que primeiro surgiu o interesse em divulgar as idéias de Neill. Já nos idos de 1930, um educador, Seichi Shimoda, se encantou com as idéias e a pessoa de Neill, se pôs a traduzir suas obras, escreveu um livro sobre suas idéias e se esforçou por provocar um debate sobre o sistema educacional japonês -sabidamente um dos mais autoritários e repressivos que se conhece.
Conversando com várias dessas crianças japonesas, fica-se com a impressão de que, impossibilitados de darem a seus filhos uma infância feliz em sua própria sociedade -na qual as crianças, cada vez mais cedo, vivem no chamado "inferno de exames"-, alguns pais optam pela solução mais drástica e os mandam para uma escola anticonvencional de um país estrangeiro.
Yoshiki, filho de um farmacêutico e de uma mãe apaixonada por música, tem uns 14 anos e, como os demais japoneses, viaja três vezes ao ano para o Japão, por ocasião das férias. Já há seis anos em Summerhill, quer ser músico, não pretende voltar a morar no Japão e seus pais, segundo ele, estão satisfeitos com sua decisão. Outro rapazinho contou que sua mãe descobrira Neill na universidade, se encantara com suas idéias e decidira que ali seria o lugar ideal para educar seus filhos. Ele não decidiu ainda o que quer ser, mas sabe que será "livre para ser o que quiser".
Difícil conversar com Zoë, a filha que Neill teve aos 63 anos de idade, sem lembrar que ela foi objeto de tanta publicidade na infância e que muito se especulou sobre o futuro do "bebê que se autogoverna" e da "menina que nunca leva palmadas". Sem se mostrar muito expansiva, Zoë é afável e tranquila. Tão determinada quanto o pai a não trair os princípios fundamentais de Summerhill, Zoë continua a enfrentar muitos dos mesmos problemas do passado.
Dificuldade monetária tem sido uma constante na vida da escola. Com uma capacidade pequena (70 a 75 alunos), com anuidades relativamente baixas (por volta de 6.000 libras por ano) e sem qualquer subsídio do governo, ela depende de doações para a necessária manutenção e melhorias de suas instalações.
Encontrar professores também não é fácil, pois a exigência de dedicação em tempo integral e o baixo salário (7.500 libras por ano) tornam o emprego pouco atraente para a maioria. Como diz Michael, o professor de ciências, o que "nos mantém aqui só pode ser a crença nos ideais de Summerhill".
A incompreensão dos inspetores, que se mostram cegos para os objetivos da escola e que insistem em julgá-la segundo padrões que ela não pretende atingir, acompanhou, desde sempre, a história de Summerhill. Repetindo Neill, Zoë diz que continua a lembrar os inspetores que não se pode "julgar felicidade, confiança e responsabilidade com um pedaço de papel", mas que a crescente "recusa em levar em conta nossa filosofia" deixa a impressão de que o "Departamento de Educação quer nos ver mortos".
A publicidade e o sensacionalismo que têm acompanhado a escola ganharam também nos últimos anos um grande impulso com um documentário do Channel 4 -"Summerhill at 70"-, extremamente nocivo e irresponsável. O que era apresentado como um estudo em profundidade da escola, se concentrou, na verdade, nos alunos da "gangster age" e quase nada revelou da vida mais ampla da comunidade que os absorvia e que com eles lidava. Mostrando aos espectadores cenas de confronto, tensão e agressão, o documentário omitiu tudo aquilo que poderia revelar a dinâmica da escola e a afeição, o calor humano e o sentido comunitário que a permeava.
A deturpação da realidade foi tamanha que muitos espectadores ficaram com a impressão de que os americanos compunham a maioria dos alunos, quando, na verdade, só eram quatro. Já os japoneses -um terço da população infantil na época- praticamente não apareceram em cena, provavelmente por não se ajustarem bem ao quadro frenético e anárquico que os cineastas queriam passar. Outra deturpação diz respeito às reuniões gerais semanais, essenciais para o autogoverno da comunidade, mas representadas no documentário como caóticas e ineficientes.
Numa segunda visita a Summerhill, pude assistir a esse "General Meeting" e observar o modo como as questões do dia-a-dia da escola são discutidas e resolvidas seriamente pelos alunos e professores -tudo muito semelhante ao que se lê nos livros de Neill.
Inicialmente houve votação para decidirem se permitiam ou não a presença de visitantes. Aprovada a presença, negaram, no entanto, a permissão para se tirar fotos da reunião. Muito à vontade e confiantes, os alunos, uns mais envolvidos e falantes do que outros, levantam questões e expõem suas opiniões sobre temas que lhes dizem respeito. Um menino de uns nove anos queria tornar o seu "quarto mais bonito" e pedia para levar um sofá da sala para lá. Outros dois foram multados por se recusarem a sair do quarto dos colegas, quando solicitados.
O tema mais "quente" nessa tarde era, no entanto, o da atitude a ser tomada perante uns dez jovens da cidade que assiduamente ficavam na entrada de Summerhill numa atitude suspeita e insinuante. O que ficou evidente nessa ocasião é a raridade com que os asiáticos manifestam suas opiniões. Apesar de serem maioria, eles se limitam a votar e quase não falam nas reuniões. "É uma longa jornada até eles conseguirem soltar suas emoções", diz Zoë. Talvez os cabelos coloridos e oxigenados de dois ou três deles fossem o primeiro sinal dessa mudança.
Avaliar a influência de Summerhill, como de qualquer outra instituição, não é fácil, especialmente por não serem tão visíveis, como as realizações acadêmicas, os resultados, que ela pretende atingir.
O que parece inegável, considerando a vendagem dos livros de Neill e a vasta correspondência que recebeu de pais de várias partes do mundo, é que a influência de Summerhill não ficou confinada às crianças que passaram por seus bancos (ou seria melhor dizer seus jardins?). Quanto às influências diretas, os depoimentos de ex-alunos tendem a salientar, como ganhos, a infância feliz, o autoconhecimento, a confiança e a ausência de medo para enfrentar a vida. Pouco treinamento acadêmico é o outro lado da moeda apontado como falha que tiveram, mais tarde, que superar.
Conversei longamente com dois ex-alunos que ali estudaram nos anos 30-40 e 60, respectivamente. O mais velho, Gordon Leff, um conceituado historiador medievalista que se formou na Universidade de Cambridge, foi para lá enviado pela mãe horrorizada com os métodos da escola Montessori que os filhos frequentavam. Já o mais novo, Albert Lamb, faz parte dos primeiros "invasores" americanos que, tendo lido, ele próprio, "Summerhill", tomou a iniciativa de convencer a mãe a mandá-lo para Neill. Profundamente ligados à escola, pode-se dizer que ambos, cada um a seu modo, permaneceram ativos membros da família Summerhill.
Criança disléxica e com auto-imagem bastante negativa, Albert adquiriu autoconhecimento, autoconfiança e independência em Summerhill. Estudou cinema na New York University, se dedicou a desenhos animados e à música e se tornou um summerhilliano inveterado. Casou-se duas vezes com ex-summerhillianas, enviou os filhos para Summerhill e nos últimos anos tem se dedicado à causa de Summerhill e de escolas com semelhantes ideais. Não só editou "The New Summerhill" (1992) e uma revista sobre a escola, "Friends of Summerhill Trust Journal", como dirige um centro de estudos e arquivo sobre educação democrática. Para ele, a escola de Leiston é uma instituição "única" na sua devoção à causa da infância feliz: "Com uma infância feliz debaixo do braço o futuro desenvolvimento fica praticamente assegurado".
Gordon Leff, hoje com 70 anos, já é mais indeciso quando fala de Summerhill. Assíduo correspondente e confidente de Neill ao longo de mais de 30 anos, Gordon foi nomeado muitas vezes nos seus livros, era chamado carinhosamente de Bunny e lembrado como "o único ex-summerhilliano que me faz visitas regulares".
Num de seus momentos mais pessimistas, Gordon chegou a dizer que, "colocando a realização individual no centro das coisas", a idéia de Summerhill pode não ter sido nada benéfica: "Às vezes penso que o mundo se tornou uma grande Summerhill-on-sea, sem maiores perspectivas do que a satisfação de egos individuais".
Como resposta a esse desencanto, é interessante lembrar um dos casos mais comoventes da influência de Summerhill, influência à distância e em circunstâncias particularmente calamitosas.
Durante a Guerra do Vietnã, um padre fundou uma escola-comunidade para crianças e adolescentes órfãos, que haviam vivido na rua, do roubo e da prostituição. Diante de um visitante surpreso com o clima harmonioso e aberto da comunidade, o padre lhe explicou como conseguia criar tal ambiente em condições tão dramáticas: "Foi muito simples. Li um livro de um inglês chamado A.S. Neill, pus suas idéias em prática, e, como pode ver, elas funcionam".
(MLGPB)

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