São Paulo, domingo, 4 de maio de 1997 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
O naufrágio de uma época
MARCELO COELHO
Fala-se de uma moda Titanic. Creio que corresponde, nos países desenvolvidos, à sensação de que tudo está "indo bem demais". Aquele navio de luxo, aparentemente imune a catástrofes, terminou naufragando em sua viagem inaugural; e o mundo civilizado agora se pergunta por quanto tempo sua festa vai durar. O paralelo entre o Titanic e a civilização européia é, contudo, um pouco vulgar e fácil de fazer. Um dos méritos de Erik Hansen é desviar-se deste "iceberg" sociologizante. O romance narra, em "flashbacks", a história de quatro músicos da orquestra do navio. Jason Coward, o maestro, desistiu de uma promissora carreira de médico para terminar tocando valsas em transatlânticos de luxo. Spot, o pianista, é um compositor fracassado, filho da nobreza alemã. David, violinista, é um adolescente judeu que foge de uma paixão não-correspondida. Petronius Witt é um contrabaixista italiano em plena crise de esquizofrenia. Há um capítulo para cada personagem, entremeado de algumas rápidas e poéticas anotações de bordo. Não se descreve o naufrágio; o livro termina com o delírio do contrabaixista. Sabemos, em todo caso, o que irá acontecer, e Erik Hansen -que publicou o livro em 1990, quando tinha 25 anos- tem a delicadeza de deixar que o leitor estabeleça por si próprio as relações entre o desastre e as quatro narrativas. Jostein Gaarder, autor do best seller "O Mundo de Sofia" afirma na contracapa que estamos diante de "um magistral romance de idéias". Não chego a tanto; mas há certamente questões intelectuais em jogo neste livro. A primeira é, sem dúvida, a crise da arte tradicional e o advento da arte moderna no começo do século 20. Spot, o compositor frustrado, se vê sem forças para acompanhar as revoluções estéticas que presencia. O tema do fracasso individual está presente no livro todo. Nenhum músico de orquestra ligeira, tocando nesse reluzente Titanic, está livre desta sina. David, o estudante judeu, apaixonara-se por uma pintora; ela prefere ficar com o grande ator Max Jaenner, cujo talento esmaga as pretensões do rapaz. O trecho que descreve Max Jaenner no papel de Mefistófeles, numa apresentação do "Fausto" de Goethe, é um dos pontos altos do romance. Há outros: Petronius Witt tocando violino numa apresentação de teatro de bonecos para uma condessa, ou Jason Coward vendo um espetáculo estranho na Londres do fim do século. A saber, uma briga de cachorros treinados contra ratazanas, num ringue, com os espectadores histéricos apostando quantos ratos o cachorro vai matar. São páginas de grande vivacidade literária, de impressionante poder de evocação. Pensamos quase imediatamente, assim, no filme que este livro poderia inspirar. Talvez esteja aí o problema secreto de Erik Hansen: o de ser um bom romancista tradicional, numa época em que o cinema tomou posse das narrativas tradicionais, e em que o gênero "romance tradicional" está para a literatura assim como a música ligeira das orquestras de restaurante está para a obra de arte erudita. O romance inteiro parece ser, assim, uma elegia de si mesmo; um "cântico", como diz o título, em louvor à "última viagem" da cultura burguesa tradicional. Por isso mesmo, termina com o delírio do contrabaixista, com a vitória da "loucurada" -termo que tantas vezes parece caber à arte moderna. Mas o autor não consegue, ou não quer, reproduzir esse delírio. Oferece-nos, isso sim, uma viagem segura, confortável, num navio luxuoso e bem decorado. É hábil o bastante para evitar colisões mais graves com o kitsch e com a pretensão modernosa. Seu romance é um Titanic que deu certo; proeza digna de elogios, mas talvez um pouco supérflua. Num autor de 25 anos, é também uma mostra de grande maturidade artística; Erik Hansen tem a ciência do desengano -essa qualidade ou defeito dos velhos-, além de uma admirável delicadeza, de um visível "savoir-faire" ficcional. Resta saber se, a partir de agora, estará disposto a arriscar-se mais, ou se vai preferir ser, em literatura, algo como um músico competente dedicado a animar jantares num salão de luxo. Ele sabe, aliás, que essas coisas não mais existem. Texto Anterior: As marcas do preconceito Próximo Texto: HISTÓRIA; PSICANÁLISE; POLÍTICA; FILOSOFIA; SOCIOLOGIA; CRÍTICA; RELIGIÃO; ROMANCE; CONTO Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |