São Paulo, domingo, 4 de maio de 1997
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Caso pataxó: tentando entender

MARTA SUPLICY

Precisamos tentar compreender as razões que levaram rapazes que comem bem, têm convívio familiar e frequentam escolas a se portarem com a selvageria demonstrada ao incendiar o índio pataxó, como "brincadeira" do grupo. O caso tem algumas similaridades com o ocorrido na mesma semana nos EUA, onde dois adolescentes de 18 e 17 anos mataram dois entregadores de pizza "para sentir a emoção de matar uma pessoa". Planejaram os assassinatos a sangue frio, sem conhecer as vítimas.
Diferentemente dos "bem nascidos" brasileiros, os americanos eram "problemáticos". Um tinha largado a escola, e o outro tinha passagens pela polícia, tendo como hobby atirar em pessoas com pistolas de bala de chumbo.
Em comum esses jovens têm a mesma programação violenta de televisão e a sociedade de consumo, na qual as pessoas valem pelo seu status e não como seres humanos. Desde a infância, essa geração tem sido submetida à violência ímpar dos meios televisivos.
Ela vai desde os desenhos animados, aos filmes e telejornais. A maioria das crianças não tem ninguém para decodificar o que vê. Um foguete que estoura no bandido, e ele reaparece segundos depois, inteiro, ou uma bala que atinge um gangster no coração, e ele continua a dirigir, não causam estranheza para uma criança com menos de sete anos. Ela não tem pensamento abstrato, não consegue elaborar que, na realidade, aquilo não se passa assim. Como disse um menino ouvido por pesquisadores americanos: "Eu não sabia que levar um tiro sangrava e doía".
Além disso, a criança e o adolescente são expostos a formas extremamente violentas de reagir ao que não agrada ou à frustração. Não se aprende a negociar: falou algo que não gostei, toma um soco ou um tiro. E, no desenho, ou no filme, fica tudo por isso mesmo. Solidariedade, então, nem se fala.
A criança se torna adolescente e a violência social a que está exposta vai se ampliando. É o telejornal que invade, ao vivo, colorido e aos gritos, a casa dos suspeitos de crime, sempre pobres e na maioria das vezes negros; é a polícia agredindo ou matando o cidadão. Isso ocorre tanto nos filmes quanto na vida real: quando se mata o vilão, não importa como, o bem foi feito. É tanto o caso dos meninos de rua da Candelária quanto o dos terroristas do Peru.
Precisou ser filmada uma cena com policiais batendo e matando pessoas "de bem" para que a população e os governos percebessem que algo de muito sério está ocorrendo. Quando os direitos humanos só valem para alguns, acabamos todos correndo riscos. Mas, como vimos no hediondo caso de Brasília, alguns, os mais feios, pobres e sujos, correm mais risco. Um senhor bem composto, com uma maleta, cochilando, à espera do ônibus em Brasília, dificilmente seria incendiado.
E o que mais têm a TV e a família a ver com tudo isso?
Situações que produzem medo, pânico ou angústia, como as sentidas quando se vêem filmes de terror ou violência, provocam uma descarga de adrenalina, com sensações muito parecidas com as do orgasmo. São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se páreo para as de sexo explícito. Talvez para as de perversidade sexual. Os jovens absorvem essa intensidade de estimulação diariamente. Aí vão passear. E como se divertir obtendo o mesmo nível de excitação? A resposta é dada com clareza pelos assassinos adolescentes dos dois países: "Era para dar um susto nele", "Era para sentir a sensação".
E por que só alguns agem assim?
Não podemos esquecer o indivíduo, sua herança genética, seu limiar maior ou menor em relação à frustração, seu aprendizado, resultado da interação com os valores da sociedade, com seus pais e familiares, amigos e professores. Temos o problema da desestruturação da família, a falta de interação entre pais e filhos, a valorização do dinheiro como bem supremo pela sociedade -quem não consome não é "gente" e, portanto, é descartável.
Mesmo os pais que se preocupam com seus filhos têm pouco tempo para a convivência. Os filhos, quando adolescentes, sofrem uma pressão do grupo social e da mídia fortíssima. Pressão que será enfrentada com o que foi introjetado dos valores parentais somados à capacidade única daquele indivíduo. No caso do Brasil, temos que acrescentar a impunidade a que estão acostumadas as classes mais abastadas.
As escolas poderiam prover um contraponto, mas não dão a menor importância para a discussão dos direitos humanos, cidadania, Constituição, ética e solidariedade. Recebi, em recente viagem, a Constituição da África do Sul, em tamanho de bolso, material que é distribuído e discutido em todas as escolas do país. Um belo exemplo. A decisão do governador Cristóvão Buarque de definir um dia para que o caso do índio pataxó fosse discutido em todas as escolas públicas de Brasília foi uma atitude nesse caminho.
Entretanto, essas discussões devem fazer parte dos currículos das escolas e não ocorrerem só depois da tragédia consumada. Filmes violentos, só depois de certo horário. Programas de TV que desrespeitam a cidadania, como o do apresentador que instiga uma jovem a colocar a mão num vaso de vidro cheio de cobras e notas de R$ 100, devem ser revistos. Esses também provocam o gozo perverso, daí o seu sucesso.
A educação maciça da sociedade quanto aos direitos humanos e valores éticos e sua mobilização para repudiar os acintes que constantemente presenciamos na TV são passos importantes para uma sociedade mais civilizada.

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