São Paulo, domingo, 4 de maio de 1997
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Afinal, para que serve a crítica?

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Duas pessoas conversam. Uma escreve semanalmente sobre televisão para um jornal de grande circulação. A outra é seu amigo:
A - Onde você quer chegar? Pau em todo mundo, não fica nada em pé na sua frente. Será que nada presta? Não é muito arrogante essa sua pretensão de fuzilar a esmo?
B - Não digo que não, mas tente inverter uma vez o raciocínio. O problema me parece o contrário do que você diz: em matéria de TV, há excesso de conivência e vassalagem, não de crítica. Os intelectuais -digo os poucos que prestam- não se ocupam desse assunto, que consideram baixo, pouco nobre. O público de TV, por sua vez, consome o que lhe é servido, não pensa nada a respeito. No abismo que se formou entre a omissão de uns e a submissão de outros, as piores cafajestadas da TV passam como se fossem coisas naturais, inofensivas, até simpáticas. Não lhe parece escandaloso, por exemplo, que o dono da segunda maior emissora do país seja ao mesmo tempo animador de um programa dominical de auditório e que atire cédulas sobre pessoas, que se comportam como animais selvagens, enquanto grita sorridente "vocês querem dinheiro?".
A - Você está sendo falacioso. Cita casos extremos e generaliza.
B - As coisas são mais misturadas do que você gostaria. Você admira Gilberto Gil e despreza Gugu Liberato, certo? Mas Gil vai ao "Domingo Legal" e participa daquele jardim zoológico sem nenhum problema. Caetano Veloso canta no especial de fim de ano da Angélica, tudo numa boa. Pergunte a algum artista respeitável o que acha da Xuxa. O mais provável é que se derreta em elogios intermináveis. E ai de quem se levantar contra isso. Será considerado um chato, um rancoroso, talvez acusado de crime de lesa-sociabilidade.
A - A sua pretensão à seriedade chega a ser ridícula. Lembro do Marcelo Coelho escrevendo sobre o Zé Simão. Dizia ele que a crítica do "Macaco" era bem-sucedida porque consciente da inutilidade que há em assumir qualquer registro intelectual ou elitista ao tratar de assuntos e temas tão canalhas, tão irrecuperáveis, tão idiotas quanto os que vemos na TV. Esbravejar, dizia o Coelho, não adianta; levar a sério tudo isso seria a atitude mais ridícula possível.
B - O risco de cair no ridículo é permanente, mas ao citar o que disse o Coelho você acaba de me dar razão. Quem disse antes que a TV tende para a idiotia, as exceções confirmando a regra, fui eu.
A - Ainda assim, xingar, dizer que tudo é idiota, isso é fácil. Numa época como a nossa, que considera tudo relativo, não há gênero mais infame do que o da crítica cultural. Tenho saudades daquela época em que os críticos eram civilizados, entendiam do que falavam e tratavam o seu assunto como prestação de serviços, sabendo que se dirigiam ao consumidor, nada mais. Não seria só essa a sua modesta tarefa?
B - Você nasceu quando? O seu crítico civilizado, que se dirigia a um público idem, acreditava numa espécie de "educação dos cinco sentidos", da qual a burguesia seria a porta-voz histórica. Isso acabou mais ou menos em 1914, são ilusões perdidas. Estamos falando de Janete Clair, não de Balzac. Já ouviu falar em indústria cultural? Ou agora é daqueles que também consideram o conceito "obsoleto e ultrapassado"?
A - O que fazer, gracinha?
B - O ideal seria virar abóbora. Na falta disso, a saída é tentar não capitular e carregar na tinta, mas sem que a demolição, que é a única atitude aceitável, caia numa euforia inconsequente, numa espécie de gracejo modernista de segunda mão, como fazem aqueles críticos que ainda acreditam estar implodindo o edifício burguês com um um século de atraso. Mas talvez você tenha razão: a crítica talvez não passe de um esperneio narcísico de alguém que é tão selvagem quanto as coisas de que se ocupa.

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