São Paulo, terça-feira, 6 de maio de 1997
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O mundo precisa de um novo Van Gogh

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Estou sentado no "hall" do velho hotel Algonquin, em Nova York. "Aqui outrora retumbaram hinos..." penso, olhando a mesa-redonda onde se sentavam os gênios dos anos 20-30, no famoso Oak Room.
Nesse hotel se reuniam os donos da ironia, patente importante da intelectualidade litero-jornalística americana. Ouço os risos de Dorothy Parker e penso no grande Edmund Wilson, com cinco martinis enfileirados, tomando um depois do outro, até cair no tapete persa.
Para onde foi o charme dos artistas e intelectuais? Onde estará a frase mordente do Alex Woollcott de hoje, onde estará o neo-Harold Ross, fundador do "New Yorker", onde estará George S. Kaufman e até o genial Harpo Marx e seu sorriso de anjo sem vergonha?
Adoro esse hotel onde fico, na esperança de que os fantasmas dos anos 30 me segredem soluções no ouvido. Bons tempos, quando os artistas eram olhados como messias chiques, em Paris e Manhattan, cheios de veneno e esperança, línguas afiadas, muito olhados com humildade bovina pelos idiotas que, como dizia Nelson Rodrigues, ficavam calados, de boca aberta, de onde pingava a baba estática da admiração.
Hoje, com a neoliberalização da cretinice, se metem em tudo. Sobrou ao artista uma atitude masoquista, se mutilando na "body art" do "piercing", se flagelando, querendo recuperar o temor em que Gertrud Stein era tão temida quanto hoje se teme um dono de corretora ou um traficante.
Em cima da mesinha, vejo um velho número do "The Atlantic Monthly" e caio no meio de um artigo que parece uma resposta a meus devaneios.
"Onde estão os artistas?", pergunta o ensaísta Brad Holland, lembrando que muitos criadores dos anos 20 aderiram ao "futurismo" que pregava "a substituição da lenta tradição do século 19 por um mundo veloz e moderno de máquinas, violências de marketings e 'public relations'." E brinca, dizendo que "é preciso ter cuidado com os intelectuais. Às vezes eles conseguem o que querem".
O tom do artigo de Holland está dentro da moda, que é gozar tudo que ainda denote esperança de mudar o mundo. Meus queridos fantasmas da mesa-redonda do Oak Room parecem mais tênues agora. Só a grossura do mercado nos dirige a alma.
E o pior é que muitas frases do Holland têm sentido. Criticam a onipotência que os intelectuais erigiram como consolo, desde utopias estéticas até o delírio voluntarista.
E Holland, como fez também James Gardner recentemente, tripudia em cima: "Duchamp fez uma obra-prima que foi um urinol. E chegou ao fim da vida jogando xadrez, como se fosse um manifesto artístico. Meu avô também acabou num urinol jogando xadrez". E, criticando o dadaísmo e o surrealismo: "hoje é impossível distinguir esses movimentos estéticos da vida cotidiana".
Meu Deus, de que arte precisamos? Que arte precisa ser reinventada? Talvez um "neosublime", agora que até a reprodução de Picasso no fundo do salão já tem um toque levemente antigo e quase "feio"? E Holland sacaneia o expressionismo abstrato: "as multinacionais não podiam enfeitar seus halls de estilo Bauhaus com retratos de palhaços tristes e casinhas de campo. Por isso, o abstracionismo foi inventado."
Usa a mesma amarga gozação, ovante com a vitória do pragmatismo, sobre a pop art: "antes, os ricos encomendavam belíssimos quadros para seus palácios. A reprodução dessas obras acabava em calendários pendurados nos postos de gasolina. Hoje, é o inverso: o sujeito pinta uma caixa de sopa vagabunda que acaba pendurada na sala dos ricos".
Aos poucos, o artigo de Brad Holland mostra um outro lado mais "sanitário": criticar o utopismo narcisista que a arte teima em manter, se recusando a aceitar a "finidade" (ou finitude) da obra no mundo.
Mesmo em tortuosas "instalações", o artista continua em busca de uma "essência", que o mundo de hoje rejeita. Há uma busca de "grandeza" meio acadêmica que mesmo a autoflagelação dos artistas radicais deixa entrever: "Há décadas que o 'establishment' artístico é composto por escultores de terra, sujeitos furando o corpo e violoncelistas de topless", diz Brad.
Tudo para evitar o terrível. E o "terrível" é a vitória do sonho americano que está nos despertando do sonho europeu. Talvez a arte tenha virado mesmo um mero entretenimento, talvez não passemos de efêmeros produtores de objetos parciais, passageiros e descartáveis.
A morte da "aura" da arte, (que Benjamim genialmente tentou transformar numa "meta aura" popularizada, reproduzida) talvez seja mais difícil de aceitar do que pensávamos. Aceitá-la, é aceitar a morte.
Hoje, a aura passou para o próprio artista, que se vê como um profeta abandonado, mas ansiando por liberdade e beleza, mesmo se ele expõe na Leo Castelli os seus próprios excrementos para delícia das grã-finas.
Sacaneia o Holland: "Antigamente, o artista de vanguarda chocava a classe média; hoje, a classe média choca o artista de vanguarda". É cruel, mas é genial.
É duro ouvir frases que Mallarmé poderia ter dito como "Estamos tentando romper com as normas" que hoje é o slogan do anúncio do McDonald's. Essas picadas do marimbondo americano são úteis: "o artista atual típico produz uma obra pequena envolvida por muita teoria. Poderia dispensar a obra e expor a teoria".
Ou criticando a arte engajada: "sempre que vejo um artista querendo me "conscientizar" lembro-me de Jane Fonda e Sissy Spacek explicando ao Congresso as realidades da vida rural". Ou ainda sobre o "multiculturalismo" politicamente correto que dizima as universidades: "não entendo por que os artistas que odeiam os clichés de culturas sobre as quais eles não sabem nada."
Ou seja, abrir mão da utopia da arte moderna é tão difícil quanto abrir mão de velhos dogmas políticos. Que será da arte?
Talvez a tal "transcendência" a que o medo da morte nos obriga seja encontrada "depois", talvez depois de termos aceitado uma mortalidade óbvia, uma "finitude infinita", uma "parcialidade radical" e, a partir daí, olhando o mundo óbvio em volta como a Pop Arte fez genialmente, talvez possamos reinaugurar uma utopiazinha descartável, como os produtos de um transcendental supermercado americano. Mas como dói perder a fé. Estamos precisando de um novo Van Gogh...
Essas coisas graves eu pensava no hall do Algonquin, vendo o fantasma tênue de Edmund Wilson cair de porre no tapete secular, comendo a última cereja do dry martini pós-pop.

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