São Paulo, sábado, 10 de maio de 1997
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Os diagnósticos de Machado e Bilac

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Dois lançamentos recentes resgatam uma fatia significativa da nossa vida intelectual na virada do século passado: a militância jornalística de Machado de Assis e Olavo Bilac, ao longo das primeiras décadas da República. Devidamente anotadas e introduzidas por especialistas, as crônicas reunidas de ambos propiciam ao leitor o confronto de dois diagnósticos autorizados do país, matizam e tornam viva a apreensão de uma cena literária que se modificava pela multiplicação de espaços de publicação, ganhando importância no debate político.
Pelas mãos de um machadiano de mão cheia, revivem as contribuições dominicais de Machado à "Gazeta de Notícias", principal jornal do Rio de Janeiro nos agitados primórdios republicanos; das 248 crônicas que o bruxo de Cosme Velho desovou entre 1892 e 1897, as 83 que correspondem ao intervalo entre 1892 e 1893 aparecem reunidas em "A Semana". Pelas mãos de outro conhecedor experiente do período pré-modernista, Antonio Dimas, o quadro do fim do século se completa com "Vossa Insolência", uma seleção de crônicas do sucessor de Machado no rodapé da "Gazeta", Olavo Bilac, publicadas de 1890 a 1910, mas não apenas naquele diário. Parte dos artigos de Bilac reunidos saiu originalmente em outros jornais, como o "O Estado de São Paulo", parte em revistas, como a "Kosmos".
No volume organizado por John Gledson, em meio à matéria vária e miúda, cotidiana do então Distrito Federal (há de tudo um pouco: "fait divers", bondes elétricos, mudanças da paisagem urbana), encontramos a voz irônica do autor de "Dom Casmurro", monarquista e liberal, cético em relação aos caminhos pelos quais enveredava a República, maltratada pela corrupção e farra financeira deodoristas e pelo autoritarismo centralista de Floriano. Novamente cai por terra a tese de um escritor alheio à política local, do aristocrata do espírito, acima do bem e do mal, derrubada pela evidência de um espectador atento e fino dos graves acontecimentos contemporâneos, como a Revolução Federalista e a Revolta da Armada, da vida econômica do país e de processos sociais que mudariam a sua fisionomia, como, por exemplo, a imigração.
Sob aspecto de despretensioso resumo semanal, temperadas pelo humor erudito e carregadas de alegorias, recorrendo à memória recente da vida política no Império ou a exemplos da história universal como máscaras, as pequenas peças prestam-se predominantemente ao comentário crítico, ora à ética na administração pública e na vida parlamentar brasileiras, ora ao comportamento predatório e especulador das elites durante o Encilhamento. Valem também como depoimentos sobre uma cidade que começava a desaparecer, o Rio que se traduzia pela intimidade da central de boatos, sediada na estreita Rua do Ouvidor, da qual o autor relutava em se despedir, apesar de antever seu fim inevitável.
A rua, acanhada, mas acolhedora, um quase beco, vai dando lugar aos vastos espaços ordenados, impessoais e disciplinadores das avenidas, imitações dos bulevares parisienses. Na condução deste processo, Machado critica os limites e insensibilidade social da visão reformadora e positivista dos seguidores de Floriano; a administração do Distrito Federal era alinhada com o governo central e os comentários às ações de Barata Ribeiro, prefeito nomeado do Rio entre abril de 1892 e maio de 1893, refletem o desgosto de Machado contra o autoritarismo dos métodos daquele que pretendia ser uma réplica local do Barão de Haussmann.
No entanto, é apenas nas crônicas do substituto de Machado na "Gazeta", Bilac, que a mudança se completa e um Haussmann brasileiro se concretiza, mais de dez anos depois, na pessoa do prefeito Pereira Passos. A aspiração à modernidade civilizada, para os olhos locais traduzida no exemplo de Paris, está não apenas nas fachadas, que o poeta parnasiano, horrorizado, quer ver livres das roupas penduradas às janelas. Dá a graça de sua presença no apreço pelo paletó, na política de saúde pública, na derrubada dos cortiços, no estilo engalanado do autor.
Ao contrário do que acontece com as crônicas machadianas, reunidas segundo a cronologia de sua publicação, em "Vossa Insolência", os textos de Bilac foram agrupados segundo temas. Equilibram depoimentos sobre o ambiente cultural e literário brasileiros, discutindo expoentes da estética naturalista ou o neoclassicismo da arquitetura importada da França, com respostas imediatas às atualidades políticas e sociais. Nestas seções, podem-se acompanhar, por exemplo, suas reações ao progressivo colapso do czarismo russo, no plano internacional, ou ao massacre de Canudos, no plano local. O culto a figuras como Émile Zola e Eça de Queirós, peregrinações francesas incluídas, as queixas contra a incipiência de nosso universo letrado mostram uma das faces de um autor influente e bem-aceito, sinônimo de respeitabilidade e gosto médio no momento.
Tanto o deslumbramento com o moderno que adentrava o Brasil litorâneo, como a impaciência com os contrastes entre o arcaico e o novo afloram aqui e ali em crítica de costumes mal-humorada: a vontade higienizadora e cosmética se aplica tanto à prostituição infantil quanto à sem-gracice e pobreza das exposições cariocas, modestas feiras da modernidade, se comparadas às européias. Campanhas cívicas contra o analfabetismo, reclamos de justiça social para os desalojados pelas demolições que o novo panorama da cidade demandava, não desmentem a fama de conservador, evidente na miopia histórica quanto ao fenômeno de Canudos, na tradução imediata da posição oficialista.
A linguagem alambicada do poeta e cronista sai em defesa de uma ordem pública em que a rapidez dos bondes e a eficiência da iluminação elétrica são festejadas como a pá de cal num Rio promíscuo e mergulhado no "caldo dos ratos mortos da peste". Seu nacionalismo confunde-se com a celebração das luzes do século, capazes de enterrar os demônios saudosos da monarquia e do intervencionismo da Igreja nas coisas de Estado, encarnados na figura do Conselheiro. O recenseamento da população e o serviço militar obrigatório são sinais dessa nova engenharia social que Bilac não se cansa de louvar, num estilo que alterna o puxão de orelhas indignado, corretivo necessário aos agentes do atraso, e o salve-salve laudatório. As meias tintas da ironia não aparecem, substituídas por uma convicção, talvez excessivamente segura de si, expressa em metáforas encadeadas e trabalhadas à exaustão, em busca do grandiosismo, de efeitos.
Para além deste interesse histórico, de recriação a partir de uma perspectiva interna de um momento crucial da história brasileira recente, o leitor sai do volume com a certeza de que Bilac foi um homem de seu tempo, para o bem e para o mal, preso aos limites ora de um entusiasmo, ora de um ceticismo datados, em contraste com o faro para o indefinido, o contraditório, o que ainda virá, mesclado a um diagnóstico acurado do aqui e agora, que fazem de Machado não menos preso ao chão histórico, mas muito mais de todos os tempos. Como os preciosos "O Rio de Janeiro do Meu Tempo", de Luís Edmundo, e o esforço crítico de Brito Broca em "A Vida Literária no Brasil-1900", a reunião destas crônicas vêm para ajudar no ajuste do foco ainda mal-definido que temos do quadro destes anos tão vizinhos quanto pouco íntimos. Que venham mais.

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