São Paulo, sábado, 10 de maio de 1997
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Exercícios de observação

MARINA DE MELLO E SOUZA

O primeiro contato do leitor com um livro se faz pelo objeto e este vem atestar a boa qualidade das edições brasileiras. Uma bela capa, projeto gráfico original e uso criativo da tipografia nos fazem procurar pelo nome da responsável por tal trabalho: Glória Campos. Também original é o tema do livro: os contextos de produção e as ideologias presentes nos relatos de 20 autores que trilharam regiões de Minas Gerais no período 1808-85.
Escrito na primeira metade dos anos 80 e só agora divulgado para o público, o livro de Ilka Boaventura Leite mantém pontos de contato com o que veio a ser conhecido como antropologia "pós-moderna", na qual o discurso é tomado como o único objeto possível da investigação antropológica. Este não é um referencial para a autora, mas a relação se impõe, principalmente se pensarmos no livro de Mary Louise Pratt, "Imperial Eyes - Travel Writing and Transculturation", um dos bons trabalhos produzidos por essa vertente de investigação e que também analisa aspectos da literatura de viagem no século 19. Pratt deteve-se em alguns autores que percorreram a África e a América espanhola, atenta para a influência dessas narrativas sobre a cultura européia, num processo de "transculturação", no qual o colonizador transforma-se na relação com o colonizado.
Unindo ambas autoras está o interesse pelo contexto de produção de tais narrativas, orientadas pelo colonialismo europeu, principalmente inglês. E, mesmo sem enveredar pela análise da relação estabelecida entre colonizador e colonizado, a partir do discurso que aquele faz sobre este, ou buscar as marcas que as narrativas imprimiram na cultura de origem dos narradores, Ilka está atenta para o lugar que o exótico descrito pela literatura de viagem terá na constituição de uma identidade européia, civilizada, aproximando-se da sofisticada análise de Pratt. Estabelecendo relações entre o viajante e o etnólogo, considera o relato de viagem uma pré-etnografia, "um exercício de observação que não inclui a discussão do lugar do olhar", preocupação que só surgirá com a crise do sistema colonial. Fruto dessa preocupação, seu livro aponta em que medida o envolvimento dos diversos autores estudados com instituições financiadoras -agentes administrativos, orientações profissionais específicas, interesses de exploração econômica e visões de mundo etnocêntricas e racistas- influenciaram as suas "reinvenções da realidade".
Manancial inesgotável para os estudiosos da sociedade brasileira do século 19, durante muito tempo as narrativas de viagem foram lidas acriticamente, fundamentando interpretações permeadas de preconceitos e deformações, presentes nos textos em que se baseavam. "Antropologia da Viagem" mostra que estes textos "pré-etnográficos" continuam sendo muito úteis como fonte de informações, devendo-se, entretanto, estar atento para a relação específica que mantêm com o "outro" descrito, como aliás têm feito diversos estudiosos cujos trabalhos vieram a público mais recentemente.
Na introdução do livro, a autora esclarece os critérios de seleção das narrativas e apresenta os viajantes escolhidos numa útil sistematização de informações sobre as situações que os trouxeram ao Brasil. Na primeira parte, "Projetos e Trajetos de Viagem", dá uma visão geral do contexto histórico no qual as narrativas foram produzidas e dos interesses institucionais e pessoais por trás da definição das rotas de viagem, destacando os trajetos priorizados. Na segunda parte, "A Viagem como Pretexto para o Campo", analisa as narrativas de viagem do ponto de vista de seus aspectos formais -tipos de registro, situações em que ocorreram, organização e divulgação das informações- e, do ponto de vista de seu conteúdo, relacionando os temas privilegiados com os interesses dos observadores, dos financiadores e dos leitores potenciais. Alguns dos momentos mais inspirados do livro estão nesta parte, quando compara a viagem a um rito de passagem e aponta o conhecimento do outro como caminho na busca da própria identidade.
Na terceira parte, "Os Relatos sobre os Negros Livres e Escravos", a autora verticaliza a discussão destacando o modo como os viajantes viram o negro. Analisa trechos que abordam questões relativas aos africanos e seus descendentes e agrupa-os por temas, como a cor, o sexo, vida cotidiana, festas, condições de vida e trabalho e hierarquias sociais. Num trabalho que se aproxima de uma compilação de textos referentes a um mesmo assunto, ora analisa o olhar dos viajantes, ora busca ela própria reconstituir criticamente a realidade retratada. Dessa forma, muitas vezes fica a meio caminho entre uma análise do discurso dos viajantes e uma utilização crítica desse mesmo discurso para penetrar no universo dos negros, escravos e livres de Minas Gerais do século 19. Nesta última posição, traz contribuições para a análise das festas, com algumas interpretações acuradas sobre os ritos de coroação de reis negros e para a questão das relações interétnicas e o uso que a bibliografia sobre o assunto fez dos relatos de viagens. Por outro lado, quando aborda o cotidiano do negro, principalmente do escravo, a organização do trabalho para o senhor e para si próprio, as formas de dominação e resistência, entra por terreno já bastante trilhado pela historiografia recente, sem incorporar estas contribuições, ficando na esfera das afirmações genéricas.
Estudo que pode ser situado na encruzilhada entre a antropologia, a história e a análise literária aponta para problemas importantes relativos ao uso da literatura de viagem como fonte de informações, mas acaba pecando pela indefinição de fronteiras. Faz uma reconstituição histórica superficial do período em que as narrativas são produzidas e muitas vezes deixa de lado as diferenças entre os diversos momentos do século 19. Buscando interpretações de ordem geral, tende a ignorar as particularidades de cada viajante, tomando-os como um conjunto relativamente homogêneo, quando a análise das narrativas ficaria mais rica se considerasse a dinâmica existente na relação do indivíduo com a sociedade. Pecadilhos decorrentes de uma oscilação entre a análise dos textos e a busca do entendimento da realidade retratada que torna a empreitada grande demais. Se constrói um "jogo de espelhos" entre o olhar do viajante e seu próprio olhar, como destaca Antonio Candido no prefácio do livro, acaba presa na multiplicidade dos reflexos, o que não invalida a importância do livro para todos os potenciais usuários das narrativas de viagem.

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