São Paulo, sábado, 10 de maio de 1997
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Reler 'O Capital'

ELEUTÉRIO F.S. PRADO

Os novos livros de Ruy Fausto, como os anteriores, se afiguram bem difíceis para quem não pertence à interseção formada pela tradição filosófica alemã -Hegel em particular- e pela economia política clássica e sua crítica feita por Marx, especialmente em "O Capital". O próprio autor se dá conta disso quando lamenta, no prefácio ao tomo um de "Marx: Lógica e Política" (Brasiliense, 1983), que o ensino universitário tenha excluído o cruzamento dessas duas especialidades. Apesar da importância de sua obra, em particular para os que se interessam pelo futuro da atual sociedade, a grande maioria de seus leitores, na qual me incluo, estão restritos a uma leitura algo capenga. Há ainda uma dificuldade adicional, pois, embora desdobrada em diversos livros e artigos, a sua obra, possuidora de uma unidade toda particular, tem de ser lida em conjunto. Encontram-se em cada uma das partes referências às outras, que se constituem assim em pressupostos umas das outras.
Entretanto o fio da meada -mais aparente que real- pode ser encontrado por qualquer leitor minimamente atento. Ruy Fausto deixa claro -no referido prefácio, por exemplo- que acredita em um uso historicamente produtivo da obra de Marx, mas pensa que esta possibilidade encontra-se bloqueada não só pelo acúmulo de leituras errôneas de seus textos, mas também por uma prática histórica desastrada que decorre, em grande parte, daí. Para tanto, julga que é preciso reestudar Marx sob o visor da dialética. Esta, porém, está destruída como teoria rigorosa. O fio com que tece os seus intrincados textos, portanto, vem a ser uma reconstituição minuciosa, paciente e penetrante da dialética marxiana. Nessa tarefa, Ruy Fausto não apenas busca reconstruir o sentido do que Marx disse, mas também os seus silêncios...
O livro agora editado em português, que se liga evidentemente aos anteriores "Marx: Lógica e Política" (tomo um, 1983 e tomo dois, 1987), trata da relação entre as dialéticas de Marx e de Hegel, tendo como referência os três primeiros capítulos do Livro 1 de "O Capital", que apresentam o momento aparente do capitalismo, ou seja, a chamada circulação simples. Esses capítulos, como se sabe, versam sobre a troca de mercadorias e, assim, sobre as formas do valor, sobre os agentes da troca e o dinheiro. O livro de Ruy Fausto começa com dois capítulos, mais hegelianos, digamos, em que se fala de fundamento, aparência, matéria, conteúdo, forma e finalidade. É sob a perspectiva deles que retrabalha, depois, a dialética da forma do valor, a dialética das ilusões desta forma e a dialética do dinheiro. Ruy Fausto faz também considerações importantes sobre a relação do dinheiro com a linguagem, do ponto de vista marxista, assim como sobre a relação da dialética com o estruturalismo e com o pós-estruturalismo.
Um dos livros publicado na França ("Le Capital et la Logique de Hegel") trata ainda, agora de uma perspectiva mais ampla, da relação entre as dialéticas daqueles mesmos dois autores, enfocando as apresentações de "O Capital", de Marx, e da "Lógica", de Hegel. Em sua primeira parte procura mostrar em que consiste o hegelianismo de Marx e, na outra, faz uma tentativa de definir rigorosamente -a expressão é sua- o que separa essas duas dialéticas que, segundo ele, têm um fundo comum.
O alvo preferencial desse livro é o público francês, acostumado, nas últimas décadas, a ler Marx sob a ótica althusseriana ou posicionando-se contra ela pela afirmação do caráter humanista dos seus escritos. Ruy Fausto discute com estas duas leituras opostas, sustentando que a posição de Marx não é nem humanista nem anti-humanista. A tentativa de afirmar o homem num mundo ainda não humano -o capitalismo- interverte-se em seu contrário, ou seja, na negação do homem. No discurso de Marx, por isso, o homem e o humanismo estão apenas implícitos como possibilidades históricas -ainda não efetivadas.
Por fim, "Sur le Concept de Capital", pode ser considerado como uma suma dos resultados mais propriamente lógicos alcançados pelas investigações de Ruy Fausto nas últimas três décadas. Na contracorrente da tendência formalista da lógica moderna, vai do desenvolvimento do conceito de capital na obra máxima de Marx para a apresentação das formas lógicas aí existentes, imperceptíveis para um olhar pouco treinado no modo de pensar dialético moderno.
No posfácio de "Le Capital et la Logique de Hegel" encontram-se reflexões sobre a política de Marx que merecem um comentário mais específico, pois revelam que o objetivo de Ruy Fausto, ao examinar minuciosamente os escritos de Marx, não é apenas reconstrutivo, mas também crítico. Aí ele se concentra sobre a forma segundo a qual Marx pensa o advento do comunismo, o novo caminho que se abriria após uma ruptura global e "catastrófica" em que o capitalismo é deixado para trás. Marx, é bom lembrar, considerava utópica toda tentativa de reformar o capitalismo, por exemplo conservando o sistema econômico e o dinheiro, mas limitando radicalmente o movimento avassalador da acumulação de capital. Com o mesmo espírito também denunciava a democracia realmente existente como "burguesa", enquanto forma de esconder a dominação de uma classe, a burguesia, sobre outra, o proletariado. O comunismo, excetuando a possibilidade de um retorno à barbárie, era, segundo Ruy Fausto, a sua perspectiva exclusiva. Esse ponto foi questionado por muitos. Ruy Fausto concorda genericamente com as críticas a um certo "necessitarismo" da dialética marxiana, chegando a afirmar que a perspectiva do comunismo na prática histórica leva não à sociedade comunitária real, mas à sociedade burocrática.
Mais do que isto, Ruy Fausto chega, implicitamente, a conceder uma certa razão a Adam Smith, pois afirma, resolutamente, que a possibilidade de total neutralização do egoísmo na esfera da reprodução material é duvidosa. Mas, se assim é, há algo não sustentável em Marx. Onde se localiza, então, o problema da dialética marxiana, problema este que o próprio desenvolvimento histórico deste século tornou patente? Para Ruy Fausto está no modo segundo o qual Marx pensou a história, como uma ruptura que leva da pré-história (o capitalismo e antes dele) à história (o comunismo que virá depois de um período de transição). Dito de outro modo, Marx pensou a história como uma gênese em que emerge um homem novo, completamente liberado do egoísmo mercantil. Para Ruy Fausto, isto, não há dúvida, é utópico.
Se assim é, por que então todo o esforço de reconstruir a dialética marxiana? É que Ruy Fausto aprova, sem restrições, a crítica da economia política clásssica. "Como crítica" - diz- "o edifício é sólido". Ora, para fazer esta afirmação não seria necessário fazer um crítica da economia política pós-clássica? De qualquer modo, daí, vale lembrar, emerge a idéia absolutamente crucial de que, no capitalismo, o capital é sujeito, e o homem apenas suporte de relações sociais. Será, então, que Ruy Fausto tem mesmo razão? É só no pensamento da história que a dialética marxiana apresenta falhas? A necessidade da ruptura, da reviravolta revolucionária, já não está presente implicitamente desde as primeiras páginas de "O Capital"? Já não se encontra na seção sobre o fetichismo da mercadoria, no primeiro capítulo desta obra, uma referência de Marx ao advento de uma sociedade transparente, planejada e racional? O conceito de "capital-sujeito" não implica a necessidade de uma prática revolucionária semelhante àquelas que a história deste século conheceu?
De qualquer modo, ele concorda inteiramente que continuam necessárias a crítica do capitalismo e a limitação do processo de acumulação a partir de um projeto democrático. Que Ruy Fausto tome a palavra, pois, com ele, o marxismo está pensando seriamente -e isto é bom.

Onde encomendar-
"Le Capital et la Logique de Hegel" e "Sur le Concept de Capital" podem ser encomendados à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, tel. 011/231-4555)

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