São Paulo, sábado, 10 de maio de 1997
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Para familiares, filme 'absolve a ditadura'

EMANUEL NERI
DA REPORTAGEM LOCAL

Representante dos familiares de mortos e desaparecidos do regime militar na comissão do governo federal que repara financeiramente aquelas perdas, Suzana Lisboa, 45, acha que o filme "O Que É Isso, Companheiro?", de Bruno Barreto, "absolve a ditadura".
Ex-militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), um dos grupos armados que enfrentavam o regime militar, Suzana diz que Barreto "inventou fatos no filme" de forma deliberada para melhorar a imagem dos militares.
Viúva de Luiz Eurico Tejera, que desapareceu em 72 depois de ser preso pelos militares, ela acha que Barreto transforma em um "facínora" o personagem de Virgílio Gomes da Silva, o operário que comanda o sequestro do embaixador Charles Elbrick, em 1969.
Barreto, segundo Suzana, trata os personagens femininos como "prostituta ou sargentona estereotipada", adotando o "mesmo discurso da ditadura". É o caso da personagem da guerrilheira Vera Sílvia, que dorme com um segurança para obter informações.
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Folha - Quais os pontos do filme com os quais os familiares mais discordam?
Suzana Lisboa - O que nós mais abominamos -e pelo qual o Barreto tem que ser responsabilizado- é a imagem que ele passa do Virgílio Gomes da Silva, o "Jonas", mostrado como facínora. Depois, achamos que ele absolve a ditadura. E mostra guerrilheiros de forma totalmente distorcida.
Folha - A história foi alterada no filme? Há personagens falsos?
Suzana - Ele alterou a história. Fez uma propaganda de que era um filme com uma história verdadeira. Só que é um filme de ficção. Quem vai ao cinema sai sem saber que aquilo é totalmente uma ficção. E nós discordamos totalmente dessa ficção que ele criou.
Então por que se basear em fatos reais? Ele devia ter feito uma ficção e não se basear no livro de Fernando Gabeira, que é um depoimento. Os fatos que o Gabeira relata são verdadeiros. Barreto cria uma história em cima disso, dando uma opinião dele sobre esses fatos.
Folha - Para os familiares, qual o efeito dessas alterações?
Suzana - O efeito é bombástico. Estamos há mais de duas décadas lutando para resgatar a história e mostrar quem foram os verdadeiros terroristas deste país.
Como o "Jonas" é apresentado como um facínora, quem lê no "Dossiê dos Mortes e Desaparecidos" que pedaços de seu corpo ficaram grudados na parede (da dependência militar em que estava preso) nem vai se impressionar tanto, já que ele era um facínora.
Folha - Quais os outros personagens com imagens distorcidas?
Suzana - O Joaquim Câmara Ferreira, o "Toledo", dirigente da ALN que foi morto sob torturas -em nenhum momento ele conta isso-, aparece como um velho idiota que ficava se aproveitando dos jovens. Fica como um idiota, ouvindo a "Internacional".
O próprio embaixador Elbrick também tem sua imagem distorcida. Ele foi expulso do Brasil porque se posicionou contra os métodos da ditadura e porque se dispôs a dar depoimentos favoráveis aos seus próprios sequestradores.
Folha - Quais são as medidas práticas que os familiares pensam em adotar para reparar os equívocos?
Suzana - Acho que os familiares do Virgílio devem entrar com ação por danos morais. Barreto fez a ficção que queria. Agora, tem de ser responsabilizado por isso.
Folha - A sra. acha que houve desconhecimento da história ou foi uma opção deliberada?
Suzana - Foi uma opção. Ele mesmo diz que os sequestradores são baseados em personagens reais. Propõe a absolvição da ditadura no momento em que mostra um torturador com crise de consciência.
Folha - Então torturador não pode ter crise de consciência?
Suzana - Pode até ter. Mas isso não acontecia naquela época, quando a Oban (Operação Bandeirantes) era clandestina. Não era organizada, como ficou depois, dentro dos Doi/Codi, que eram ligados ao Exército. Naquela época, não havia crise de consciência. Se você conversar com alguns deles, vão dizer que fariam tudo de novo.
Folha - Na sua opinião, a absolvição dos militares é ideológica?
Suzana - Acho que essa proposta é clara. O discurso de que o regime militar não tinha nada a ver com a tortura, de que ela era clandestina, é feito até hoje. A gente sabe que era o contrário. A tortura era uma política do Estado.
Folha - Bruno Barreto diz que tem "empatia" pela esquerda.
Suzana - Mas não foi isso o que ele fez. Se ele queria suscitar o debate, está suscitando. Ele não tem como não reconhecer que essa absolvição da ditadura está colocada em todos os fatos que ele romanceou. Por que ele não coloca que o embaixador foi expulso do Brasil? Porque ele não ia querer se contrapor à ditadura. Por que ele mostra a tortura como uma coisa "en passant". Por que ele não diz o que aconteceu com as pessoas que viveram aquele período?
Folha - Para Barreto, a esquerda esperava um "thriller americano", com sequestradores sendo "mocinhos" e torturadores, "bandidos".
Suzana - De jeito nenhum. Nem a própria esquerda faz apologia de seus feitos. Ninguém quer ser herói. Buscamos mostrar o que a ditadura fez.
Pegar as mulheres e mostrar, como ele mostra no filme, como prostituta ou como uma sargentona estereotipada, é assumir o mesmo discurso da ditadura, que não aceitava a participação da mulher, que devia estar na cozinha.
Folha - É o caso da sequestradora Vera Sílvia, que no filme dorme com um segurança para obter informações? É um viés machista?
Suzana - Claro. E coloca o personagem da atriz Fernanda Torres como uma "sargentona". Outra coisa que ele diz é que havia uma luta de classe dentro da esquerda. Não sei de onde ele tirou isso.
Folha - Barreto diz que não fez um filme para os torturados, mas para as pessoas que entram no cinema sem informações do fato.
Suzana - Pior ainda. O espectador que chega lá sem ter nenhuma informação só pode sair absolvendo o regime militar.

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