São Paulo, segunda-feira, 12 de maio de 1997
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O choro mitificador

GUSTAVO IOSCHPE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vida em dormitório universitário -apesar dos banheiros imundos e dos ratinhos que de vez em quando vêm me visitar- tem suas vantagens. Uma delas é a impressão de estar num circo, tamanha a riqueza de excentricidades que rolam por aqui.
Minha vizinha, por exemplo: cada vez que eu ligo o som, ela bate na parede. Pode ser Mozart ou Van Halen, duas da manhã ou quatro da tarde, não interessa. Ligou o som, dez segundos depois vem a batida na parede. Em meio ano de convivência, a pessoa (ou seria um robô?) do outro lado nunca se dignou a pegar o telefone e pedir pra baixar o volume ou caminhar três passos para vir até o meu quarto conversar. Sua única linguagem é a batida na parede, o que até já levou essa minha imaginação fértil a conjeturar se na verdade não seria algum primata perdido em Filadélfia ou, quem sabe, um marciano querendo ver que tal é essa vida universitária. Pois como estou me esforçando em fazer de conta que sou um ser civilizado, apegado à moral e aos bons costumes (o que quer que isso signifique), sempre que ouço as batidas na parede, diminuo o volume ou -suprema heresia- desligo o som. Isso, até a semana passada.
Na semana passada, celebrava-se aqui a chegada da primavera em um ritual dionisíaco (tradução: 10 mil estudantes de porre 24 horas por dia, de quinta a domingo). Deve ter sido o ímpeto primaveril (ou umas doses a mais) que me fez lembrar as minhas origens brasileiras. Quando a coisa aí do outro lado bateu na parede, eu não só não baixei o volume como o aumentei. Quase no máximo. E fui tomar banho, nem aí. No banho, ouvi umas 200 batidas na parede, mas eu só "Figaro li, Figaro lá" embaixo da ducha, e que se dane (não foi bem essa a palavra) a vizinha.
Pois, quando retorno triunfante do chuveiro, vejo que meu quarto havia virado um caos: a vizinha havia batido tanto na parede que derrubou tudo que estava nas prateleiras. Livros, aparelho de som, impressora, tudo no chão. Pronto, aí já era demais. Revoltei-me com a tirania da vizinha e decidi me emancipar desse jugo enlouquecedor. Então, dirijo-me ao quarto dela (era uma guria mesmo, o marciano não deu as caras) e, enfurecido (e um pouco contaminado pelos deuses etílicos, é verdade), descarrego minhas reclamações sobre a vizinha, com dedo em riste, gritando a plenos pulmões. Inquisitivo: como é que alguém que só sabe se comunicar com murro na parede consegue escrever uma tese acadêmica? Ameaçador: não quero nem saber, quem causou o estrago vai pagar pelo conserto. Firme, mas sem baixar o nível. Até o fiscal do meu andar me apoiou, foi testemunha. Mas aí a guria apelou pra velha -e infalível- tática feminina de cair no choro e pedir desculpa. E dá pra ficar bravo com alguém chorando? Eu não consigo. Então, fui embora.
No dia seguinte, várias pessoas que eu nem conhecia direito vieram me cumprimentar pelo tratamento desferido à vizinha, que não parece ser muito popular. Ocorre que o meu companheiro de quarto, entusiasmado com a história, aumentou um pouco os fatos e espalhou por aí que eu tinha xingado a vizinha de gorda meretriz (não foi bem esse o termo), que a tinha rebaixado, humilhado, detonado. Tinha-a feito chorar!
Já tentei desfazer o mal-entendido, mas ninguém acredita em mim. "Humilde, ainda, esse animal!", me elogia o pessoal. Acho que virei um mártir. Taí: mártir de dormitório de universidade, já é alguma coisa. Pensei em ir pedir desculpas à guria por tê-la feito chorar, mas aí meus correligionários me disseram que já era demais. Então, fiquei quieto, fiel aos que me enaltecem. Sabe-se lá o que iriam inventar a meu respeito caso eu resolvesse abandoná-los.

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