São Paulo, terça-feira, 13 de maio de 1997
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De Londres a Marbella

CELSO PINTO
DE LONDRES A MARBELLA

A vitória dos trabalhistas no Reino Unido tem tudo para se transformar num marco de referência. Os ecos podem não ter chegado a Marbella, no Chile, onde a esquerda latino-americana esteve discutindo, nos últimos dias, um caminho para voltar ao poder, mas imagino que isso acabará acontecendo.
É grande a tentação de interpretar a vitória trabalhista como fruto de seu transformismo neoliberal. Na própria Inglaterra, onde estive na semana passada, alguns analistas entenderam o triunfo de Tony Blair como uma espécie de tributo tardio ao "thatcherismo", com a conversão trabalhista à privatização, ao enxugamento do Estado e ao mercado. O eleitorado estaria cansado dos 18 anos de conservadores no poder, mas não, no fundo, de suas idéias centrais.
A primeira medida anunciada por Blair, que pegou todo mundo, inclusive seu partido, de surpresa, seria uma confirmação da tese. Ao conceder ao Banco da Inglaterra (banco central) independência para fixação da taxa de juros, os trabalhistas fizeram o que muitos conservadores defendiam, mas jamais tiveram coragem de aprovar.
Abrir mão da fixação dos juros, em favor de um conselho onde o governo é minoritário, significa separar o controle da inflação da política. Ao governo cabe fixar a meta inflacionária (provavelmente 2,5% ao ano), mas ao Banco da Inglaterra e ao novo conselho caberá determinarem quão rápido o país deverá chegar lá.
Se uma imperícia na administração da economia ou uma crise externa fizerem com que o ciclo inflacionário não coincida com o ciclo político, os trabalhistas correm o risco de virem a enfrentar eleições gerais, no futuro, com juros em alta e economia em desaceleração. E se quiserem acelerar os gastos para ganhar popularidade, poderão trombar com um aumento dos juros atuando no sentido oposto.
Não deixa de ser uma ironia ler o artigo do último ministro da economia conservador, Kenneth Clark, criticando a decisão dos trabalhistas com o argumento que o Banco da Inglaterra tenderá a exagerar na cautela e obrigar o país a enfrentar juros mais altos do que o necessário. Exatamente a crítica que a esquerda costuma fazer aos bancos centrais independentes criados pela direita.
Os trabalhistas optaram pela independência do Banco da Inglaterra exatamente por isso. Com a reputação histórica de irresponsáveis no combate à inflação, os trabalhistas preferiram contar com a reputação alheia. Deu certo: os mercados reagiram de imediato baixando os juros de longo prazo dos títulos britânicos, numa prova de confiança de que a inflação não vai subir.
Outra razão para a independência do banco central é que ela é um requisito para o país aderir (se o fizer) à união monetária européia. Na verdade, seria preciso avançar um pouco mais, mas o grande passo já foi dado.
O que realmente permitiu aos trabalhistas adotar uma medida como esta, contudo, é a cristalização da noção de que é importante assegurar uma inflação baixa. Em outras palavras, é a ampla percepção de que trocar mais inflação por mais emprego não é algo sustentável, nem duradouro, como mostrou a longa convivência entre inflação alta e desemprego alto.
Essa noção está por trás dos princípios da união monetária européia, que reúne (e separa) socialistas e conservadores de diversos países. Certa ou errada, ela passou a ser um ponto de partida importante para qualquer partido com um projeto de ficar no poder muito tempo, como os trabalhistas.
Pode ser que a direita tenha ganho esta batalha, mas os trabalhistas, ao mesmo tempo, feriram o coração do "thatcherismo" ao anunciar a adesão ao "capítulo social" da União Européia, que assegura um conjunto de direitos aos trabalhadores, e a criação do salário-mínimo. A tese do desmonte dos direitos sociais e do Estado social sofreu uma acachapante derrota política no país onde nasceu o novo liberalismo -e isso explica a enorme repercussão da vitória trabalhista entre os partidos de esquerda europeus.
Só o tempo dirá se a nova química vai funcionar. O Brasil, que levou dez anos para descobrir o liberalismo, pode levar outra década para perceber onde ele está sendo desafiado.

E-mail: CelPinto@uol.com.br

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