São Paulo, quarta-feira, 14 de maio de 1997
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Kasparov perdeu para Deep Blue. E daí?

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O enxadrista Garry Kasparov perdeu um match para o computador "Deep Blue", da IBM. Qual o significado desse fato?
Nenhum, a meu ver. Que um ser humano perca de um computador, em um jogo de xadrez, é tão irrelevante quanto um ser humano perder de um computador num campeonato de cálculo ou de tabuada. Claro que o xadrez envolve um número imenso de variáveis; e, à medida que somos ignorantes das possibilidades abertas pela estatística, à medida que somos cegos diante das possibilidades de um jogo, a habilidade pessoal se confunde com a intuição, e resulta, quando alguém vence sempre, na idéia de "gênio".
Gênio é aquele que, sem calcular tudo, chega ao resultado certo. Mas, como logo foi possível inventar um computador que "calcula tudo", é natural que um gênio do xadrez, como Kasparov, venha a ser derrotado. O acontecimento é previsível, banal como um lance de xadrez. Não me desespero diante do fato. O que acho alarmante, contudo, é a lógica jornalística.
Claro que qualquer jornal encara o desafio entre Kasparov e "Deep Blue" como um acontecimento crucial na história da humanidade. Aí está o ridículo, a ilusão da coisa.
Jornalisticamente, apresenta-se o fato como sendo sinal de que o homem está sendo derrotado pela máquina. A coisa é muito louca. A revista "Veja" já tinha sugerido uma linha de contestação. É claro, por exemplo, que um automóvel é mais rápido do que nossas pernas. Ninguém teve crises de identidade por causa disso. Mas o xadrez leva a crises de identidade.
Por que? Em que sentido o xadrez se tornou refúgio da criatividade humana? Por que os "gênios" de nosso tempo são aqueles do xadrez e da matemática?
Tudo é um mal-entendido. Um gênio do xadrez é plenamente substituível por um software avançado. A grandeza da humanidade não se mede pelos feitos de Kasparov. Mas é como se pudéssemos quantificar a inteligência humana, para que, depois disso, sofrêssemos em conjunto a derrota diante do computador.
Não por acaso, faz sucesso o livro do dr. Daniel Goleman, insistindo nas virtudes da "inteligência emocional", contra as quantificações do QI e a disputa entre o cérebro humano e o computador.
Está em jogo uma dupla farsa ideológica. Em primeiro lugar, identifica-se a humanidade à capacidade de cálculo (caso Kasparov). Em segundo lugar, identifica-se a inteligência com a "emoção" (caso Goleman). Nos dois casos, reduz-se a razão humana a um jogo, do qual se pode sair vitorioso ou derrotado.
O único adversário real contra quem a razão humana está lutando é, entretanto, a natureza. A vitória da IBM num jogo de xadrez é tão bem-vinda, nesse caso, quanto qualquer outra conquista tecnológica. A vitória da "inteligência emocional" num conflito doméstico, segundo os padrões do dr. Goleman, é apenas uma vitória da convenção social, do pacto social, sobre o egoísmo cego, o individualismo e o narcisismo dos sujeitos neste fim de século.
Por que tanto pânico? É que nos acostumamos a pensar, a definir a humanidade como uma mistura entre matemática e sentimentalismo, entre razão instrumental e emoção palpitante. Há outras definições de "homem" mais interessantes, contudo, do que essa esquizofrenia ocidental. Podemos pensar no "homem" como o único ser da natureza capaz de criar-se a si mesmo. Podemos pensar no "homem" como o rival trágico de Deus, essa outra criação sua. Podemos pensar no "homem" como aquilo que se define a si próprio pela linguagem, e que, ao imaginar um "outro", constitui-se enquanto ser humano.
O "Deep Blue" é apenas uma máquina de jogar xadrez. Kasparov é outra. Nenhuma ameaça, portanto. A inteligência emocional não é administrável, felizmente.
Mas entro aqui num assunto menos metafísico do que a definição do "humano", para criticar um outro aspecto do episódio. Acho que todo acontecimento real está correndo o risco de se tornar, atualmente, "acontecimento jornalístico".
Tudo se torna tema de jornalismo, sem que se dimensione sua relevância. A clonagem da ovelha escocesa, por exemplo. Imediatamente os meios de comunicação deliraram em torno da possível clonagem de Hitler, da imortalidade, da perda da subjetividade.
Pura loucura. Um clone é apenas um gêmeo de laboratório. Não será nunca "eu mesmo", meu espelho vivo e imortal; apenas alguém com a mesma carga genética que possuo. Não pensará o que eu penso, nem eu pensarei o que ele pensa. Um ser vivo igualzinho a mim não será igual a mim, pois não teve as experiências que tive. Criou-se, contudo, um delírio jornalístico em torno do caso.
O mesmo ocorre com o episódio Deep Blue. A derrota de Kasparov não tem a menor importância nos destinos da humanidade. E suponhamos que se construa um cérebro de silício capaz de comover-se, de escrever poemas, de apaixonar-se, de sentir desejo sexual.
Se for igual a nós, que diferença faz? E se for diferente? Ótimo. Pois o único interesse que há nisso tudo é saber se existe algo irredutível na "alma humana", ou se tudo o que julgamos próprio a nossa espécie é fruto de algum acaso biológico, de um arranjo mais ou menos bem-sucedido de neurônios.
Não sabemos o que é essa entidade, o "homem". Imitá-lo eletronicamente só ajuda a ver se há algo de irredutível, ou não, em nossa experiência sobre a Terra. Não defendo nenhum ponto de vista a respeito, mesmo porque qualquer ponto de vista é moralmente irrelevante. É irrevelante metafisicamente também. Só não é irrelevante de um ponto de vista teológico -mas aí, como no caso dos clones, só a burrice e o dogma se vêem no direito de pronunciar alguma resposta. Mas essa resposta, pela incuriosidade, pelo medo, pelo autoritarismo que contém dentro de si, é menos humana do que qualquer computador.

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