São Paulo, quarta-feira, 14 de maio de 1997
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Rebeldes dizem ter chegado a Kinshasa

RICARDO BONALUME NETO
ENVIADO ESPECIAL A KINSHASA

O governo do Zaire decretou um toque de recolher que começou a vigorar às 20h de ontem, véspera de um encontro que pode ser decisivo para o país. A cidade permaneceu calma.
Após alguns rumores de que haveria adiamento, a África do Sul confirmou para hoje, a bordo de seu navio SAS Outeniqua, na costa do Congo, a segunda reunião entre o presidente Mobutu Sese Seko e seu inimigo, Laurent Kabila.
Se depender dos rebeldes de Kabila, a crise acaba nas próximas horas -pela força ou não. Eles vão para a reunião na expectativa de que Mobutu, enfraquecido, entregue o poder a Kabila. Se não, dizem eles, a conquista da capital é "questão de horas".
Houve festa em Lubumbashi quando a rádio rebelde Voz do Povo anunciou a entrada em Kinshasa. Lubumbashi, no sudeste do Zaire, tem sido a "capital" dos rebeldes nas últimas semanas.
Eles rebatizaram para av. da Liberdade a principal via da cidade. A avenida ficou cheia de gente com a notícia. Muitos davam tiros para o alto para comemorar, segundo relatos chegados da cidade.
Kabila deveria partir ainda na noite de ontem de Lubumbashi para Luanda, capital de Angola, de onde então iria para Pointe-Noire, porto atlântico do Congo. O SAS Outeniqua, um quebra-gelos de fabricação russa, adquirido de segunda mão, está lá à espera de Mobutu, de Kabila e do presidente sul-africano, Nelson Mandela, mediador da guerra civil.
Mandela ontem, na Cidade do Cabo, estava otimista, mas cauteloso: "Estou muito confiante em que faremos um progresso. Todos sabem que não se trata de um evento, mas de um processo".
As próprias autoridades sul-africanas já admitiram que a reunião de hoje pode ser a última chance para evitar que as batalhas cheguem a Kinshasa. Ontem, ambos os lados disseram que houve combates na estrada que liga a capital à cidade de Kenge, 200 km a leste.
Os rebeldes ontem tomaram uma posição estratégica junto ao rio Kwango (ou seja, rio Negro), que fica nessa estrada. Como consequência, as Forças Armadas recuaram para a localidade de Mbankana. Na tentativa de retardar o avanço rebelde por algum tempo, os militares destruíram a ponte sobre o rio.
Zairenses que conhecem soldados do Exército governamental enviados à frente de combate já notam que vários estão de volta à capital -mas como desertores. O desejo de saquear parece maior do que o de lutar no Exército de Mobutu, segundo avaliam -e temem- moradores da cidade.
Bulevares desertos O toque de recolher vale até 6h. Uma greve prevista para hoje também tenderá a esvaziar os bulevares da cidade.
Vários governos ocidentais aconselhavam seus cidadãos a abandonar o país. Outros estudavam com atenção os pontos de retirada em caso de conflito. Os civis seriam retirados principalmente através do rio Congo.
Estima-se que haja 2.700 cidadãos da Bélgica, o país colonizador, que ainda tem grandes negócios no Zaire. Restam menos de 700 portugueses no país, dos quais 500 na capital. Antes dos motins de 1991, a comunidade portuguesa era a segunda maior de estrangeiros, com cerca de 20 mil pessoas.
Como em toda cidade sitiada, não faltam rumores e panfletos. Há quem diga que os brancos correm perigo de massacre (como já houve no passado na história do país). Outros afirmam que os rebeldes pretendem fazer uma "limpeza" de seus inimigos durante dois dias, nos quais seria extremamente perigoso circular.
Os acertos de contas poderiam até mesmo passar a outro país. Religiosos que trataram os feridos nas lutas em torno de Kenge afirmam que muitos deles -dos dois lados- falavam português.
O que se acredita é que as duas partes que disputaram a guerra civil em Angola estejam agindo no Zaire -o governo angolano com Kabila; a Unita, com Mobutu.
Mobutu era um dos principais apoios internacionais da guerrilha angolana, e há no país bases das quais era enviado material para a Unita -inclusive com participação de americanos, que durante o governo de Ronald Reagan apoiaram o grupo de Jonas Savimbi contra o marxista MPLA.
Direitos humanos Se os homens de Kabila vão bem na frente oeste, eles enfrentam problemas políticos nas áreas já conquistadas -que são cerca de 80% do país. O governo francês acusou a Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo-Zaire de cometer massacres contra refugiados hutus.
A relação dos guerrilheiros, a maioria deles tutsis, com os refugiados no leste do Zaire é o ponto que traz mais desgaste político à imagem de Kabila. Na verdade, essa relação é de certa forma o estopim da guerra civil.
Kabila recrutou seus homens entre os banyamulenges, uma parte da etnia tutsi que vive no Zaire há séculos e, no ano passado, se revoltou devido ao risco de seus membros serem expulsos do país.
Esses tutsis vivem em conflito com os hutus que fugiram da guerra civil na vizinha Ruanda. Agora, a ONU tenta por todos os meios levar os hutus de volta a esse país.
Segundo a França, os massacres estão ocorrendo na cidade de Mbandaka (600 km a nordeste de Kinshasa). Na semana passada, os norte-americanos já haviam dito que há fortes indícios de abusos contra os direitos humanos dos refugiados hutus.
A agência da ONU para a infância, Unicef, disse que também dois funcionários seus foram vítimas de ataques dos rebeldes. Segundo uma porta-voz do grupo, um deles teve de ser hospitalizado por causa das agressões e golpes de baioneta, quando trabalhava no leste.

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