São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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Formas da violência doméstica

BARBARA MUSUMECI SOARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ainda são pouco pesquisadas e praticamente desconhecidas, no Brasil, a violência doméstica e um de seus principais subtipos, a violência contra crianças. Nos Estados Unidos, ao contrário, esses fenômenos têm sido objeto de intenso debate, fontes de inúmeras pesquisas e matrizes das mais diversas experiências de regulação das relações interpessoais. Contradizendo a visão unilateral e preconceituosa, tão comum entre nós, que toma o conjunto das experiências de enfrentamento da violência doméstica pelos excessos noticiados na mídia, pode-se dizer que aquele país vive, nesse terreno, um processo de permanente experimentação.
A conceituação da violência perpetrada por familiares e pessoas próximas é, na América do Norte, um processo em curso, visivelmente inacabado, a despeito do reconhecimento legal do fenômeno e da difusão em massa das teorias produzidas sobre esse tema. Tendo alcançado o reconhecimento público e se transformado em problema social de primeira grandeza, a violência familiar demanda abordagens capazes de enfrentar uma dificuldade particularmente desafiadora, no caso da vitimização infantil: produzir definições consistentes que possam orientar políticas públicas e, ao mesmo tempo, prevenir os efeitos perversos associados às margens de ambiguidade conceitual.
A legislação norte-americana exige, hoje, que professores, médicos, psicoterapeutas, assistentes sociais e vários outros profissionais denunciem às autoridades os casos em que houver razoável suspeita de abuso ou negligência em relação às crianças. Porém essas noções, que orientam as denúncias e que irão, por sua vez, servir de base para a composição das estatísticas oficiais da violência, são permeadas de ambiguidades e imprecisões.
A negligência, por exemplo, sempre acoplada à figura do abuso, é, sem dúvida nenhuma, um componente importante na qualificação da violência contra crianças, mas, dependendo dos critérios utilizados para mensurá-la, corre-se o risco de incriminar boa parte da população de baixa renda que não consegue vestir, alimentar e cuidar apropriadamente de sua prole.
Há, por outro lado, uma clara relação de continuidade entre o castigo físico (aprovado legalmente) e o abuso de menores (execrado em todas as instâncias legislativas): facilmente a punição se transforma em violência, e, não raro, a violência obedece a motivações punitivas. A definição do abuso sexual, por sua vez, vem se expandindo nas últimas décadas, tornando-se particularmente problemática e sujeita a apropriações espúrias, pois depende, em boa parte, das percepções subjetivas, especialmente quando se trata de vítimas infantis.
Os contatos físicos entre as crianças e seus responsáveis estão situados em uma escala que vai do carinho e da manipulação higiênica até as carícias nitidamente sexualizadas e, no limite, o estupro. Nem sempre é fácil, todavia, para um agente externo, determinar as fronteiras entre um ponto e outro.
Nos Estados Unidos, as alegações de abuso sexual de filhos, netos, enteados etc. tornaram-se lugar-comum nas batalhas judiciais entre familiares em conflito. A verificação legal da denúncia envolve sucessivas interpretações do fato: da criança que confirma ou nega a acusação (manipulada ou não por adultos; inspirada, ou não, por suas próprias percepções ou fantasias), dos acusadores e acusados, dos agentes que recebem a denúncia e avaliam tecnicamente o caso, das testemunhas de ambas as partes, dos advogados, promotores, jurados e juízes.
Esse é, portanto, um cenário obscuro, construído por fragmentos de memória, fantasias e sugestões, por interpretações variadas, motivações imperscrutáveis, fatos e "provas" nem sempre objetivos. As consequências são, em geral, amargas para a vítima real ou suposta, quer se trate de abuso físico ou sexual. Ela será submetida a todo tipo de exame, ao constrangimento de ter de relatar publicamente seus infortúnios e correrá o risco de ser afastada de um ou de ambos os progenitores. Falsas memórias e falsas denúncias têm sido responsáveis pela destruição de muitas famílias.
Isso não significa, entretanto, que não se deva intervir em apoio às inúmeras crianças que se encontram à mercê da brutalidade dos próprios pais e de pessoas próximas (o último "survey" domiciliar de violência doméstica, de 1985, detectou, nos Estados Unidos, cerca de sete milhões de vítimas de violência severa, perpetrada pelos pais contra os filhos de 0 a 17 anos; em 1994, as agências de proteção à criança consideraram procedentes 1,04 milhão de denúncias de maus-tratos, que, em 1.271 casos, resultaram em morte). Os programas contra o abuso de menores, com todos os riscos mencionados, têm, certamente, ajudado a salvar e a proteger uma parcela dessa população (a média de mortes infantis, causadas por abuso e negligência, declinou, nas últimas duas décadas, de 3.000 para 1.100 por ano).
O grande desafio, neste momento, é evitar os abusos interpretativos e as formas traumáticas de intervenção, sem resvalar, contudo, na negligência com que esse tema tem sido tratado no Brasil (com raras e honrosas exceções).
A grande questão, posta na ordem do dia nos Estados Unidos, e que também nos deve fazer refletir, é a seguinte: quando o Estado ultrapassa a porta da casa, está invadindo a privacidade ou protegendo vítimas indefesas? Está sendo despótico ou estendendo a cidadania? Parece-me insuficiente lavar as mãos, em nome da proteção da privacidade, pois onde há vitimização falta cidadania. Mas é importante analisar os efeitos perversos de políticas públicas bem-intencionadas, para evitar o risco de que elas venham a gerar novas formas de vitimização.

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