São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FRANK CAPRA

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O centenário de nascimento de Frank Capra oferece a oportunidade de repensar sua obra à luz da história cinematográfica que a sucedeu. Considerando-se que sua produção se encerrou no limiar dos anos 60, quando as "nouvelles vagues" e cinemas novos começavam a revolucionar o cinema, é interessante analisar o que desse diretor tipicamente hollywoodiano teria sido deixado para trás pelas novas gerações e o que teria sido por elas reaproveitado.
Há quem chegue hoje, na febre do "revivals", a reinterpretar a filmografia de Capra como essencialmente moderna, apesar (ou justamente por causa) de seu tão propalado e criticado conservadorismo, exposto em múltiplas características temáticas e estéticas, como o patriotismo, o sentimentalismo, o moralismo, o conformismo, o otimismo a todo custo, a apologia do "self made man" americano, da estrutura familiar, do amor eterno etc. No que concerne à modernidade, parece-me mais frutífera, no entanto, a meditação sobre a força autoral de sua obra (iniciada nos anos 20), quando se considera que o cinema de autor só se tornaria bandeira com os cinemas novos dos anos 60.
Segundo creio, o (discutível) conservadorismo de Capra só se revela realmente digno de discussão quando tomado pela constância com que aparece, transformando-se naquele traço autoral que foi outrora pejorativamente apelidado de "Capracorn" (trocadilho que brinca com o sentimentalismo açucarado do diretor). "The Name above the Title" (O Nome acima do Título) se chama a autobiografia que Capra lançou em 1971, referindo-se a si mesmo como o primeiro diretor de Hollywood a ter seu nome estampado nos letreiros antes do título do filme.
Era portanto uma atitude consciente que determinava de filme a filme a recorrência temática e a repetição de técnicas narrativas. Com efeito, o pequeno homem do povo que vence a corrupção social pela simples força de caráter e de sentimentos é assunto direto de clássicos como "O Galante Mr. Deeds" ("Mr. Deeds Goes to Town"), "A Mulher Faz o Homem" ("Mr. Smith Goes to Washington"), "Adorável Vagabundo" ("Meet John Doe"), "A Felicidade Não Se Compra" ("It's a Wonderful Life") e indireto de muitos outros.
Gostaria de focalizar aqui mais de perto "A Felicidade Não Se Compra", filme de 1946 que o próprio Capra considerou sua melhor realização (e cuja cópia em vídeo é uma das poucas de sua vasta filmografia disponível no Brasil). Nele revela-se sob diversas formas um sentimento apoteótico, certamente inspirado na euforia da vitória dos aliados neste imediato pós-guerra. Mas acima de tudo encontra aqui expressão plena a força do cineasta-autor, que controla a mais potente das mídias, ou seja, o cinema. A produção se encaixa, evidentemente, na onda de filmes que discutem em metalinguagem a relação cinema-mídia, cujo expoente máximo, "Cidadão Kane", de Orson Welles, precedera em quatro anos a obra de Capra.
Comparar "A Felicidade Não Se Compra" com o insuperável filme de Welles seria massacrante para o primeiro e só vale a pena por colocar em evidência a postura autoral e ideológica de Capra. Aliás, cabe lembrar que antes do Xanadu de "Cidadão Kane", Capra já dera forma a um inatingível Shangri-la em "Horizonte Perdido" ("Lost Horizon"), de 1936. Mas enquanto Welles destrói o sonho utópico de Xanadu com um realismo implacável, Capra mantém a crença na felicidade, ao permitir que a fábula conviva com a narrativa realista.
Em "A Felicidade Não Se Compra", a habilidade em construir uma relação dialógica entre esses dois gêneros, combinando técnicas narrativas documentais com fantásticas, constitui, segundo me parece, o grande trunfo autoral do diretor. Se existe nisso uma modernidade, ela consiste precisamente em se localizar no nível da fábula, e não do documento, a metáfora do todo-poderoso cineasta-autor: a figura do criador só se realiza plenamente enquanto ficção. Eis a ousadia que os cineastas autorais dos anos 60, e tantos depois deles, teriam adorado cometer.
Basta examinar, por exemplo, o início do filme. Numa noite de Natal, a câmera focaliza as ruas e casas de uma pequena cidade americana coberta de neve, enquanto em "off" se ouvem vozes de pessoas orando por um certo George Bailey, que estaria a ponto de se suicidar. A câmera sobe, passa a focalizar a cidade de cima para baixo e logo uma fusão substitui os flocos de neve pelas estrelas e galáxias no céu.
Em seguida, esses astros celestes começam a "falar", o que se manifesta pelo inchaço luminoso de cada um que se pronuncia com suas respectivas vozes sincronizadas. São imagens animadas que só escapam do ridículo porque já fomos informados pela caracterização dos créditos (escritos sobre cartões de Natal com ilustrações de contos infantis) de que se trata de uma fábula. Os astros que "conversam" não são outros senão Deus e São José, que ouvem as preces dos terrestres e resolvem atendê-las, convocando um "anjo de segunda classe" chamado Clarence. O anjo aceita a missão de salvar Bailey na esperança de com isso ganhar finalmente um par de asas.
A identificação dos personagens sagrados e oniscientes com a figura do cineasta é imediata, mesmo para o espectador leigo, quando São José passa a exibir o "filme" da vida de Bailey para o anjo-aprendiz. Como numa moviola, selecionam-se os momentos significativos da biografia do mortal desde a sua infância, que vão sendo "montados" segundo a intenção dos manipuladores sobrenaturais. A certa altura, congela-se mesmo um fotograma de Bailey tornado adulto, enquanto os "técnicos" em "off" discutem suas características -exatamente como numa mesa de montagem.
Sem dúvida, tais recursos metalinguísticos são menos contundentes em "A Felicidade Não Se Compra" que em seu símile "Cidadão Kane", pelo simples fato de nunca atentarem contra o ilusionismo do nível narrativo "realista" -este coincidindo com a história americana real, desde o início do século, passando pelos anos da depressão e chegando ao presente, isto é, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Ao final do filme, ocorre mesmo uma fusão entre fábula e narrativa realista, que resulta no "happy ending" apoteótico do homem comum finalmente recompensado com o amor e o reconhecimento de seus semelhantes.
No entanto, a caracterização da fábula enquanto tal resulta em sua relativização e aponta para a predominância da perspectiva realista. O efeito geral é a dimensão irônica introduzida pela evidência da ficção, o que torna problemática a caracterização de Capra, pelo menos neste filme, como simplesmente conservador. A afirmação de que "A Vida É Bela" (tradução literal do título original) torna-se uma piada desde as primeiras ações do filme: George Bailey, quando criança, ao salvar seu irmão do afogamento na água gelada, fica surdo de um ouvido. E, a partir daí, seu bom coração o levará a uma sequência interminável de desastres e frustrações, o que, em lugar de conquistar a adesão do espectador, o faz rejeitar ou ao menos discordar da atitude conformista do protagonista.
Bailey não conseguirá cursar uma universidade, porque, com a morte do pai, tem que assumir sua pequena empresa de financiamentos imobiliários. Jamais realizará o sonho de viajar, pois o inelutável poder de seu concorrente rico não o deixará acumular fortuna. Tomará por mulher, por insistência de sua mãe, a menina que conheceu na infância e que o amarrará de vez à sua provinciana cidade natal. Os filhos que vão nascendo um após outro se tornam afinal um peso insuportável quando, falido, Bailey decide se suicidar.
Neste momento, só resta a irrealidade da fábula para salvá-lo: enviado por Deus e São José, o anjo Clarence aparece para mostrar-lhe -novamente como num filme, do qual Bailey tenta inutilmente participar- o antro de corrupção em que sua cidade teria se transformado se ele nunca tivesse existido. Só então o pobre herói toma consciência de sua ignorada felicidade, voltando triunfalmente para os braços de sua comunidade agradecida.
A "felicidade" e a "beleza" do mundo, portanto, só se mostram possíveis graças à intervenção do Deus-criador, no caso, identificado com o cineasta-ficcionista. E este se serve do mundo fantasioso infantil para alcançar credibilidade. Clarence, o anjo salvador, é considerado "uma criança" por Deus e "com QI de um coelho", por São José, buscando, ele mesmo, inspiração para seus atos numa história de ficção infantil, que são "As Aventuras de Tom Sawyer", de Mark Twain. Só se pode concluir que a realidade adulta, sem fantasias, é incapaz de fornecer a verdadeira realização humana.
Pode-se evidentemente também pensar que o autor-Capra estaria conferindo à fábula uma prerrogativa de realidade. Mas a ironia com que se trata a hierarquia e os jogos de poder nos próprios domínios celestiais, com um anjo trocando suas boas ações por um par de asas, apontam um Capra com uma consciência mais do que autoral: autocrítica. E isso faz com que os superpoderes do "rei da mídia", que é o cineasta, talvez também não passem de mera ficção.

Texto Anterior: Um novo perfil da criança desnutrida
Próximo Texto: QUEM FOI
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.