São Paulo, sexta-feira, 23 de maio de 1997
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Makhmalbaf e o admirável Irã das telas

JEAN-PIERRE PERRIN
DO "LIBÉRATION"

"O ano passado foi muito duro para o cinema iraniano, tão duro que resolvi não filmar mais lá"

"Seu último filme, 'Um instante de Inocência', conta o episódio no qual ele apunhala um policial"

"Makhmalbaf é um dos raros diretores que evocam a condição de um cineasta numa república islâmica"

Apesar das censuras impostas pelo regime político do Irã, a produção cinematográfica do país continua surpreendo o resto do mundo.
No último dia 18, o iraniano "O Gosto da Cereja", de Abbas Kiarostami, conquistou a Palma do Ouro de melhor filme no Festival de Cannes, ao lado do japonês "A Enguia", de Shohei Imamura.
Devido a dificuldades políticas no Irã, o filme de Kiarostami só foi confirmado na competição depois de a mostra ter começado.
O governo iraniano também interveio na carreira do cineasta Mohsen Makhmalbaf ("Gabbeh"), que lançou em abril, em Paris, "Um Instante de Inocência" (que deve estrear em São Paulo dentro de 15 dias).
Antes de partir para a França, as autoridades lhe deram o seguinte conselho: "Se você não falar muito da censura no Irã, poderemos, na sua volta a Teerã, autorizar o lançamento de seu filme".
Na apresentação do longa em Paris, no entanto, o diretor falou de censura: "O ano passado foi muito duro para o cinema iraniano, tão duro que decidi não filmar mais em meu país. As autoridades publicaram um código que determina as regras que os cineastas devem seguir. É proibido, por exemplo, fazer um close de uma mulher. Fica impossível filmar tendo que respeitar todas as regras".
E, com a voz desconsolada de sempre, acrescentou: "Das 70 produções iranianas do ano passado, 90% eram ruins".
Mohsen Makhmalbaf tem algo a ver com o gato vira-lata. Diferentemente dos cineastas iranianos que estão sempre pesando cada palavra com medo de serem punidos com a recusa de um roteiro ou o adiamento de uma estréia, Makhmalbaf segue seu caminho sem fazer concessões.
Dá um leve arranhão em seus colegas, pouco solidários diante das pressões do regime, porque "a maioria deles tem medo de defender seus próprios direitos". Em seguida, uma leve dentada naqueles que, como o grande Kiarostami, garantem que sempre dá para fazer um bom filme no Irã: "A produção ruim deste ano demonstra o quanto é falsa a crença de que a censura ajuda na criação".
Por fim, o felino concede uma pequena aprovação ao regime cujo "único ponto positivo em matéria de cinema foi ter proibido a entrada dos filmes hollywoodianos".
Por causa da censura, "Um Instante de Inocência", como seus três filmes anteriores, será projetado primeiro na França. Dois outros -um filme contra a guerra e uma história de peregrinos em direção à Meca- parecem condenados à eterna proibição.
Os que finalmente foram autorizados tiveram um sucesso imediato nas telas iranianas. "Salam Cinéma", que mostra uma juventude loucamente apaixonada pelo cinema, foi visto por 1 milhão de espectadores.
Enquanto o regime de Teerã se esforça para fazer do cinema iraniano uma magnífica vitrine destinada a mostrar ao mundo uma outra imagem de si mesmo, Makhmalbaf é um dos raros grandes diretores que ousa evocar a condição de um cineasta em uma república islâmica.
Makhmalbaf estava preso quando irrompeu a revolução de 79. Membro de um grupelho ultra-religioso, feriu um policial com uma punhalada para roubar sua arma. Tinha apenas 17 anos. Antes disso, sua única referência era a pobreza do sul de Teerã. Uma avó inculcou nele o ódio à arte. Ao menor indício de música, Makhmalbaf tapava os ouvidos.
"Quando tinha 12 ou 13 anos, um amigo não resistiu e foi ao cinema. Nós não sabíamos disso, mas ele se sentia tão culpado, acreditando ter perdido todos os seus méritos, que não ousava mais aparecer no grupo", lembra o diretor.
A prisão lhe permitiu abrir os horizontes. Ali se relacionou com intelectuais e descobriu os livros. Quando posto em liberdade, Makhmalbaf reclamou a criação de uma Corte Revolucionária de Justiça para condenar os artistas que colaboraram com o xá. Tornou-se cineasta oficial do regime.
Só mais tarde, em 86, ele se viu tomado por uma interrogação que não mais o abandonou. Manifestaram-se suas primeiras decepções com a censura. Em 87, viu-se coagido a filmar "Le Cycliste" fora do Irã. Nesse filme, abordou o problema da pobreza, dada como inexistente numa república islâmica.
As verdadeiras dificuldades surgiram em 90 com "Le Temps de l'Amour". Rodado na Turquia, esse filme triunfou no Festival de Cinema de Teerã, mas os jornais ultra-radicais se revoltaram porque se tratava de uma história de amor. Houve uma forte oposição em Teerã à exibição do filme em Cannes.
"Aquele que vê o mundo, é melhor do que aquele que o come", diz um provérbio persa. Da mesma forma, Makhmalbaf foi abandonando aos poucos seu apetite de idealista, que queria purificar a sociedade, para passar a observá-la e questioná-la.
"Cada vez que vejo uma verdade nova, abro os braços para acolhê-la", diz o cineasta.
Séculos antes, o grande poeta místico persa Rômi escrevia que "a verdade é um espelho que caiu das mãos de Deus e se quebrou. Cada um recolhe um pedaço e diz que toda a verdade está contida naquele caco de vidro (...)".
Makhmalbaf vê nesse espelho quebrado a alegoria da impossível democracia no Irã. Em seus filmes, tenta reunir seus fragmentos espalhados.
Sua última produção gira em torno do episódio no qual apunhala um policial. Tanto o agressor como a vítima contaram com uma equipe de filmagem e de atores para reconstituir o acontecimento. Cada um com seu ponto de vista. Uma forma de mostrar, em um Irã onde tudo é dogma, que a verdade é sempre relativa.
"Insisto na relatividade. Sem ela, sem o pluralismo, jamais alcançaremos a democracia. Acreditar que somos os únicos a deter a verdade é a primeira manifestação do fascismo", explica.
O ex-cineasta oficial, outrora propagador de uma verdade única, digeriu seus erros. Aquele que preconizava a inquisição contra os artistas do antigo regime pediu-lhes perdão em "Nasseredin Chah, l'Acteur de Cinéma" (92).
"Makhmalbaf muda a cada dia e tem a honestidade de declarar alto sua evolução. Todos esses filmes são a história de um indivíduo que quer se libertar das garras das tradições. A compreensão do significado dessa garra por parte de um muçulmano é notável", sublinha o crítico iraniano Hormuz Kei (leia entrevista nesta página).
Makhmalbaf, que ainda vive no sul de Teerã, repete à sua maneira as palavras do crítico em uma recente entrevista à revista iraniana "Cinéma": "Compreendi que nosso bairro não é o centro da atenção de Deus e que o cheiro da lama de seu riacho não é mais suave do que o perfume da cidade de Kashan".

Tradução Lilian Escorel

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