São Paulo, sexta-feira, 23 de maio de 1997
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Conheci a sororoca! Nunca mais serei a mesma

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O mundo dos peixes sempre me colocou a uma distância respeitosa de suas águas profundas. O peixe congelado da banca não me atrai com seu cheiro maroto. Aliás, minto. Sinto nos peixes de água doce, nas piabas, traíras e bagres, no seu hálito de lama, uma atávica fascinação, uma intimidade de outras eras que me dá um certo medo e que me afasta também.
Então, por estas e por outras, o máximo que já fiz foi pescar umas piabinhas com vara.
As férias em Parati começam mesmo é em maio. É quando o ar fica grávido de ouro, o mar insuportável de azul, o verde terno.
Pois foi assim, num dia assim, que descobri o peixe. O barqueiro já estava de cara amarrada quando chegamos. É preciso acordar cedo e respeitar as marés quando se vai ao mar e quando se quer pescar. E ele, o Tatuí, fantasiado de marinheiro, é na verdade um pescador.
Havia prometido iscas de camarões e levamos varas, mas resolve na última hora que não quer nada disso. Dá a cada um meio tijolo de isopor sujo, ou um pedaço de madeira enrolado com um fio de náilon. Era como se fôssemos às pipas, aos papagaios.
Na ponta da linha vinha amarrado um pedacinho de borracha hospitalar, recortado, bege, que tremulava ao menor movimento.
Tatuí foi direto para um ponto do mar, fez com que desenrolássemos os carretéis e começou a rodar o barco em longos círculos, vagarosos, com um quê de enjoativo. Na cara de todos, um vago recato, como se estivéssemos sendo feitos de bobos, cara de "só vendo que acredito" nesta pesca de corrico.
Fisgo o primeiro peixe. Vou enrolando a linha no tijolo, o Tatuí solta o leme e pula sobre o aparato da pescaria. Vai puxando a linha e deixando que ela caia molemente no chão para ir mais rápido. O peixe aparece, grande em relação às pescarias familiares, e deixa um ressaibo de frustração. Afinal, quem sentiu a puxada do peixe? De quem é o peixe? Quem merece pescar o peixe?
E a história vai se repetindo. Lá pelo sexto bicho a filha já se deitava no fundo do barco, mareada. As sororocas, pois eram sororocas, depois de muita estabanação, cuspição de sardinhas, esticavam-se brilhantes, duras, hieráticas, simbólicas. Um peixe lindo. Dá um pouco de pena que disfarçamos querendo saber o nome científico, o nome francês e inglês.
Agora, sim, vou poder traduzir este peixe sem problema. Não é um dicionário que vai me guiar. Conheço o peixe, pesquei o peixe, sou parte de sua história, minha filha o desenhou na perfeição, dona Almerinda fritou em postas, comemos o peixe, sabemos o peixe (só assim, acredito, pode-se traduzir o peixe).
O nome em português é sororoca e se enrola gostosamente na língua. O nome científico é Scomberus maculatus. Em inglês, "spanish mackerel". Olho bem de perto, tem o dorso azul esverdeado, metálico de lata. Nos flancos é como se fosse coberto de papel finíssimo de prata e, sobre esta prata, quatro carreiras de pontos redondos e dourados. Bolas douradas!
É um peixe duro, aerodinâmico, o corpo cortado por uma linha horizontal como se houvesse sido costurado com ponto-a-jour. Nunca vi nem senti coisa mais linda. Fomos seduzidos pelo canto desta sororoca. Nunca mais seremos os mesmos.

E-mail ninahort@sanet.com.br

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