São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997
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Três conversões...

ROBERTO CAMPOS

Registrem-se três importantes conversões políticas nos arraiais genericamente denominados de "socialistas": -o neo-realismo de FHC, o neotrabalhismo inglês de Tony Blair e o revisionismo das centro-esquerdas latino-americanas, aparentemente iniciado na quarta reunião sobre "Políticas Alternativas ao neoliberalismo", realizada em meados deste mês em Marbella, no Chile. O curioso é que a palavra emblemática "socialismo" entrou em desuso, merecido castigo pelo fracasso do "socialismo real".
FHC se diz social-democrata segundo o modelo europeu, o que significa que deseja praticar um capitalismo envergonhado, uma espécie de capitalismo gay. Tony Blair, recém eleito primeiro-ministro da Grã-Bretanha, fala num "capitalismo com face humana", experimento que, esperamos, tenha mais êxito que seu contraponto, o "socialismo com face humana" que Dubcek inaugurou na curta primavera de Praga em 1968, antes da invasão soviética. Na curiosa reunião de Marbella, os esquerdistas latino-americanos falam na "democratização do capitalismo" ou na "regulamentação do capitalismo". Em retrospecto, o "socialismo" foi uma espécie de gonorréia juvenil, que chegou a contaminar mais de 2/3 da humanidade. Foi uma farra extremamente sangrenta. Dois de seus paragons, Stálin e Mao Tse-tung, despacharam desta para melhor uma centena de milhões de pessoas; e alguns carniceiros menores, como Polpot e Fidel Castro, exibiram suas consideráveis habilidades nos "paredóns" do Caribe e nas covas coletivas do Camboja...
FHC merece crédito por sua rápida adequação às novas realidades internacionais, que revelaram a superioridade das economias de mercado sobre o intervencionismo socialista. Na Constituinte de 1988, endossara posturas nacionalistas e estatizantes, enquanto hoje defende a abertura internacional e o Estado reduzido ao essencial. Reconhece, como qualquer pessoa de bom senso, que, se há duas coisas fora da moda, essas são a inflação (que castiga os pobres) e o estatismo (que produz ineficiências). Em relação a ambos esses pecados, as esquerdas brasileiras tinham atitude tolerante, senão mesmo ambivalente...
FHC chega a ser acusado de neoliberal. É uma acusação injusta. Um neoliberal jamais se comprometeria a não privatizar a Petrossauro, essa fábrica de sandices nacionalistas, que nos abastece exageradamente de orgulho e insuficientemente de combustível. FHC será no máximo um "neo-realista" que se recusa a brigar com os fatos. E tem pelo menos duas qualidades que admiro. Primeiro, demonstrou que uma pessoa com alto QI e brilho acadêmico não está irremediavelmente desqualificada para atingir a Presidência da República! Segundo, lutou bravamente no caso da privatização da Vale do Rio Doce contra o "el perfecto idiota latino-americano" (essa expressão é o título de um delicioso livro de Álvaro Vargas Llosa, Carlos Montaner e Plinio Apuleyo, recentemente traduzido pela editora Bertrand de Porto Alegre, sob os auspícios do Instituto de Estudos Empresariais). No seu dicionário, "o perfeito idiota latino-americano" é aquele que, na era dos chips e dos satélites, acredita que vender minério de ferro e caulim é atividade "estratégica" do governo.
Na Inglaterra, Tony Blair proclama o neotrabalhismo, que se parece mais com o thatcherismo do que com o velho trabalhismo dos anos 70, cujo radicalismo ensejou aos conservadores 18 anos no poder. Perito na administração de sorrisos e na maquilagem de idéias, Tony Blair arquivou sem-cerimoniosamente várias bandeiras trabalhistas. A mais importante era a "estatização" dos meios de produção, inscrita na cláusula 4ª da Carta do Partido. Blair não pretende desfazer as privatizações de Thatcher. Quer apenas aproveitar-se delas, tributando os lucros excessivos criados pelo salto de produtividade após a privatização. Não pretende restaurar os abusivos privilégios sindicais que, sob lideranças trotskistas, provocaram desindustrialização e desemprego, transformando a década dos 70 numa "década perdida". Como embaixador em Londres nessa época, assisti à literal destruição de três indústrias pela truculência trabalhista -a indústria automobilística, na qual sobreviveram capitais americanos e ingressaram capitais japoneses; a indústria do aço, que passou da falida a eficiente após a privatização, e a indústria do carvão, palco de grandes confrontações, hoje privatizada e operando em escala modesta. (Com 20 anos de atraso, nossos sindicalistas da CUT no ABC paulista começam a perceber que seu radicalismo grevista está desindustrializando a região pelo afugentamento das multinacionais...).
Blair surpreendeu os financistas conservadores ao decretar alta de juros para conter pressões inflacionárias e ao proclamar a independência do Bank of England, sublinhando uma mudança de mentalidade: a estabilidade monetária é uma pré-condição de boas políticas sociais, e não vice-versa. Admite a necessidade de reformas no sistema de seguridade social, aliviando a carga do governo e encorajando a previdência privada, tema que os conservadores só ousaram abordar no fim do governo. As modificações de atitude do novo trabalhismo se limitam a maior flexibilidade no tocante a União Européia, maior disposição de flexibilizar o poder em favor da Escócia e do país de Gales e aprofundamento da reforma educacional. Promete não aumentar impostos nos próximos dois anos, o que indica que os trabalhistas abandonaram a ilusão de que empobrecer os ricos é um bom meio de enriquecer os pobres. Das velhas plataformas trabalhistas, a única em que Blair parece não transigir é a implantação de um salário mínimo compulsório. A utilidade das leis de salário mínimo é motivo de perpétua disputa entre economistas. Se o nível fixado é realista, tornam-se desnecessárias, porque o mercado as praticará de qualquer forma. Se usadas para forçar uma remuneração superior à produtividade, instaura-se o desemprego e cresce a evasão por via do setor informal. O exemplo francês é ilustrativo. O salário mínimo legal é dos mais altos da Europa, mas também altíssimo o desemprego, prejudicando sobretudo jovens e mulheres.
A terceira conversão à economia de mercado está ocorrendo na América Latina, mas é bem menos nítida. Na referida reunião de Marbella, 40 próceres da centro-esquerda latino-americana, que militam na oposição aos governos de FHC, de Carlos Menem na Argentina, e de Ernesto Zedillo no México, dão indícios de perigosa contaminação, senão por bacilos liberais, ao menos pelo vírus do neo-realismo. Os políticos brasileiros participantes foram Lula, Ciro Gomes e o ex-prefeito Tarso Genro. No documento básico, preparado pelo professor Mangabeira Unger, fazem-se surpreendentes concessões ao bom senso. Omitida a palavra "socialismo", o propósito passa a ser a reforma do capitalismo, visando a torná-lo "democratizado" ou "regulado". Não se condenam as privatizações de estatais, recomendando-se que os recursos sejam aplicados na amortização da dívida pública a fim de abater os juros nocivos ao setor privado. Reconhecem-se duas coisas importantes: 1) é necessário elevar o nível de poupança; 2) um bom instrumento para isso seria a reforma da previdência social, admitindo-se um sistema misto, em que o governo se confinaria a uma previdência básica mínima, liberando uma parcela das contribuições para capitalização privada, segundo o modelo chileno. Criticam-se os privilégios das corporações estatais, condenando por igual os oligopólios públicos e privados, posição mais avançada que a de FHC, que se comprometeu a não privatizar a Petrossauro. O entusiasmo pelo "confisco" por meio do imposto progressivo sobre a renda é substituído pela defesa de maior progressividade no imposto de consumo (segundo o valor adicionado), o que interferiria menos com os incentivos e estimularia mais a poupança. Permanece o cacoete esquerdista de aumentar a captura pelo governo de maior parcela do PIB para financiar projetos sociais. É a ilusão do "Estado benfeitor". Todos sabemos que a responsabilidade pela péssima distribuição de renda no Brasil cabe principalmente à inflação, à falta de educação básica e às injustiças da previdência pública. São culpa do governo, não do setor privado. Imaginar que, dando mais recursos aos burocratas, haverá mais "justiça social", é coisa tão perigosa como crer que a um Herodes arrependido se pode confiar a guarda do berçário...
Os imperativos de eficiência, inerentes à globalização, estão provocando no mundo uma convergência sobre métodos de alcançar estabilidade e desenvolvimento. De certa forma, a globalização é um antídoto contra ideologias belas e devastadoras...

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