São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997
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'A sensação de euforia estimula o hábito'

DE NOVA YORK

Em entrevista à Folha na última segunda-feira, a psiquiatra e diretora do Centro de Imagens do Laboratório Nacional Brookhaven, Nora Volkow, disse que seus estudos ajudam a reforçar a idéia que há uma predisposição biológica ao vício.
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Folha - Nos últimos anos, os neurotransmissores ganharam muito espaço nas discussões científicas, graças, principalmente, à serotonina, que estaria ligada à depressão, e à dopamina, que parece estar ligada à dependência de drogas. Qual a diferença entre a dopamina e a serotonina?
Nora Volkow -Ambas são neurotransmissores ligados a sensações e sentimentos humanos. Poderíamos dizer que a serotonina está associada a sentimentos de bem-estar ou mal-estar. Já a dopamina está relacionada à sensação de euforia, entusiasmo.
Folha - A dopamina seria, então, uma espécie de serotonina elevada ao quadrado?
Volkow - Não é bem assim. São sensações um pouco diferentes, a de bem-estar ou mal-estar constante, e a de êxtase e euforia.
Numa analogia grosseira, a gente poderia dizer que a serotonina está para a dopamina assim como o amor está para o ato sexual.
Folha - Quais as conclusões de seus estudos em relação à cocaína e à dopamina?
Volkow - Estudamos usuários de cocaínas em diferentes estados.
Notamos que, quanto mais um indivíduo toma a droga, mais há variação nos níveis de dopamina.
À medida que ele faz uso frequente da droga, seu corpo passa a se "habituar"a ela. Aí ele vai precisar de cada vez mais cocaína para potencializar a atuação da dopamina no organismo e ter a mesma sensação de êxtase e euforia.
Folha - Poderíamos dizer que uma pessoa teria maior ou menor tendência a se tornar viciado em drogas de acordo com os níveis de dopamina no cérebro?
Volkow -Com o equilíbrio nos níveis de dopamina, o indivíduo tende a ter maior controle de suas emoções. Assim, teria menor tendência a se viciar. Por outro lado, não podemos ser matemáticos, desconsiderando a influência de outros neurotransmissores e também do lado social, psicológico.
O ser humano pode ir ao êxtase ao fazer sexo, ao escutar uma música, ao encontrar um amigo, ao comer um doce... Cada um desses atos é capaz de gerar um pequeno boom de dopamina, mas, se o organismo do indivíduo for "normal", digamos assim, logo depois ele voltaria a ter níveis estáveis da substância. Mas se ele tiver um desequilíbrio nos níveis de dopamina, viverá de altos e baixos, e alguém com altos e baixos é alguém com maiores chances de se tornar um viciado.
Folha - A sra. cita muito o equilíbrio. Quer dizer que baixas doses de dopamina são tão prejudiciais quanto altas doses?
Volkow - Sim. Quem tem pouca dopamina corre o risco de ter tremores nas mãos e no corpo, como no caso do mal de Parkinson. Quem tem muita, pode se tornar um perigo para a sociedade e para si próprio. É o que acontece com quem se droga. Nos instantes seguintes, enlouquece, tem alucinações, sai da realidade e pode se tornar um monstro.
Folha - E quem é viciado em cigarro, em álcool, em maconha... O mecanismo do vício é o mesmo?
Volkow - O nosso instituto já fez pesquisas mostrando que o fumo também age sobre a dopamina, elevando o seu nível no cérebro e dando, portanto, uma sensação "gostosa". É claro que não é a mesma euforia gerada pela cocaína, porque o fumo age com menos força sobre a dopamina e age de forma diferente.
A sensação é de euforia, por menor que ela seja, incentiva o vício, porque o organismo quer ter a mesma sensação novamente.
Folha - Quanto do vício se deve a um desequilíbrio em neurotransmissores-chaves e quanto se deve ao próprio ambiente em que a pessoa foi criada?
Volkow - É uma pergunta impossível de responder. O que estamos tentando mostrar é que há uma predisposição biológica para o vício. Entendendo o mecanismo do vício, podemos controlar o aspecto físico. Evidentemente, há um componente psicológico, uma relação com o ambiente em que a pessoa foi criada...
É uma coisa parecida com o que aconteceu com a serotonina. Muitas pessoas que achavam que a depressão e a angústia continham só um componente psicológico se enganaram. Têm uma parte física tão forte que é visível em fotografias do cérebro humano.
O cérebro de uma pessoa deprimida tem uma parte que é menor e menos ativa, e é visível, do que a de uma pessoa não-deprimida.
Se uma pessoa tem desequilíbrio nos níveis de serotonina, não vai conseguir curar a depressão só com psicologia. Se é viciado graças a um desequilíbrio nos níveis de dopamina, também não. O que não quer dizer que psicanálise não seja importante. É e muito. É uma parte do processo.
Folha - Medicamentos que impedissem esse desequilíbrio poderiam levar à cura do vício?
Volkow - Poderiam ajudar muito. Curar 100% não sei dizer, porque a parte física é uma parte do processo.
Folha - Não foi perigoso para o homem ter centralizado, durante o curso da evolução, quase todas as respostas emocionais em apenas duas substâncias cerebrais?
Volkow - Não se trata de ser perigoso. Talvez você não saiba, mas há mais de 50 neurotransmissores.
Cada um tem um papel. A serotonina e a dopamina têm sido muito comentadas, principalmente a serotonina, que foi popularizada porque depressão atinge muita gente, mas não são os dois únicos e não centralizaram nada.
O organismo humano é como um carro. Se um pneu fura, o carro não vai rodar. Se a direção quebra, não vai comandar as rodas, e o carro não vai sair do lugar.
O organismo é interdependente. Todas as engrenagens têm de funcionar. E o organismo, como o carro, interage com o ambiente.
Se uma ponte cai, o carro não vai poder passar, mesmo se estiver funcionando bem. Se uma árvore tomba em cima dele, vai provocar estragos. Rodar numa estrada ruim, esburacada, estraga o amortecimento. Você percebe onde eu quero chegar? No ser humano é a mesma coisa.

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