São Paulo, terça-feira, 27 de maio de 1997
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A arte morreu ou os artistas marcam bobeira?

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Estou lendo Nietzsche. Vejam uma frase sua, genial e sinistra, que parece o início de "Guerra das Estrelas": "Há séculos, em um ponto perdido no universo, banhado pelas cintilações de inúmeras galáxias, houve um dia um planeta onde animais inteligentes inventaram o Conhecimento.
"Foi o instante mais arrogante e mentiroso da história do universo, mas foi apenas um instante. Depois de alguns suspiros da natureza, o planeta se congelou, e os tais animais inteligentes tiveram de morrer".
Nietzsche escreveu isso no fim do século passado, querendo dizer que, por trás da busca científica e racional da verdade, mora o desejo de morte, de esgotamento da vida, por uma letal explicação de tudo. No mundo atual, vemos o espantoso descompasso entre avanço científico e humano, vemos a convivência horrível entre o Hubble e Mobutu. E ai lemos outra frase de Nietzsche, falando da importância da arte: "A Arte é mais poderosa que a ciência, pois ela quer a vida, enquanto o objetivo do conhecimento é o aniquilamento".
Claro que não tenho nível para aprofundar esse tema, mas temos hoje essa metástase científica da informática ao lado do indigentissimo, tuberculoso desempenho artístico do mundo.
Temos de um lado o mercantilismo escroto de Hollywood, ou dos teatrões ou das galerias chics, ou dos best sellers. Do outro, a solidão melancólica das "Documenta", dos bodões negros do guetos da revolta oficial. A morte da arte é a prova mais suja do crime moderno, a prova de que essa revolução virtual não vai levar a nada a não ser ao suicídio da transcendência, à islamização das massas (vejam os evangélicos e os xiitas) e à estúpida reificação progressiva dos homens, não mais como mercadorias fetichizadas, mas como "chips". O futuro é cinzento.
Precisamos de arte, como frutos e danças, como um coro de Silenos, de Dionisios, pois a ciência e a razão estão quebrando a cara, querendo chegar até os ossos da "essência".
A arte é a ilusão aceitada, a clareza feliz de que a aparência é o lugar do humano e que só nos resta essa hipótese de felicidade num planeta gelado.
Não a arte-espetáculo, mercadoria de ver, mas a arte como ritual de embelezamento da vida. Nietzsche: "A ilusão é a essência que o homem se criou".
Aí, saindo do parnaso para o botequim, o sujeito chega para mim e pergunta: "Como é, não vais fazer mais filme?". Penso: "Grandes merdas o que o cinema está perdendo...", mas tenho de me valorizar e respondo: "Pra quê? Pra ficar bajulando o mercado ou morrendo de rancor no gueto? Para adaptar o pensamento ao "óbvio óbvio" ou ao "óbvio profundo?".
Humildemente, estou trabalhando aqui nesse espaço e na TV, onde minha cara tenta fazer uma espécie de arte conceitual das notícias brasileiras. Faço uma espécie de filme de mim mesmo. Quando penso em fazer cinema, ou seja, encarar produtores em delírio, florações de atores, arreglos vergonhosos, puxa-sacos delirantes, narcisos em flor, egos inflados e egos murchos, críticos maledicentes, magros proventos, duvidosa aceitação internacional, eu penso duas vezes e paro. E respondo ao chato do bar: "Cinema é chato...".
Mas eu deveria responder algo como: "Tenho medo da arte. Está um bodão muito negro. Não só o sistema da circulação das mercadorias não nos deseja, como os artistas embarcaram numa canoa furada. Arte era muito melhor e importante. Caiu muito, 'sifu', dançou, entrou de gaiata no navio. A vanguarda ficou acadêmica", eu diria.
Mas não digo nada e continuo pensando: "O conceito de 'experimental' está muito ligado à idéia de sofrimento, autodestruição, à proibição da redundância como um crime e ao cultivo do desagradável e do feio. A experimentação tinha de ser, como queria Stravinsky, 'exaltante'.
"A arte se fechou numa paranóia conceitual e minimalista, que impede a generosa loucura de um neobarroquismo. Movidos pela idéia socrática que Nietzsche tanto ataca, de que a arte tem de ser subordinada à razão, os artistas caíram numa denúncia melancólica das impossibilidades.
"Não há futuro para a arte subordinada à razão, seja ela digital, mercantil, iluminista ou o cacete a quatro. A celebração dionisíaca do existir é considerada frescura ou alienação.
"Prevaleceu a vertente 'triste' do modernismo, a vertente 'conceitual' que joga sobre o 'mal do mundo' apenas um vago mau humor, uma ideologia nevoenta de criticismo sem nome, apenas uma arte enojada contra o mal-estar da civilização. Acho que está na hora de se recriar um construtivismo positivo, em vez da destrutividade automática.
"Por que a melancolia seria mais profunda que a alegria? Lembro que outro dia eu vi uma grande dionisíaca, febril, erótica, efêmera, superficial-profunda obra de arte: a entrega dos Oscars da moda, no Multishow. Era o apolíneo-dionisíaco delírio do Nada feliz. A moda superficial era mais profunda que um babaca expondo seus excrementos na Leo Castelli.
"Nietzschianamente, os modettes estavam sacando que a 'ilusão é uma exigência básica da vida'. Não confundir com mentira. Nem com alienação. A ilusão como a aceitação do efêmero, ritualizado com alegria".
Não digo nada, mas penso ainda: "E se a arte tentasse disputar com o sistema, mesmo sabendo que perde, em vez de cair nessa velha autoflagelação acusatória? Será a melancolia a única forma de reflexão? Como então explicar Fred Astaire, Busby Berkeley, "Cantando na Chuva", a arte pop, o jazz? Depois do pop, será que uma "Aids conceitual" atacou tudo, depauperando a luta?
"Quando vi os Rolling Stones no Brasil, vi a arte moderna em pleno triunfo, debochada e feliz. E escrevi que os Stones são 'o Bem que o Mal do mundo produziu sem querer'.
Será que não se esgotou a denúncia do feio pelo "mais feio", que oculta um idealismo utópico que odeia a vida real, por adesão a um impossível platonismo? O 'novo' não poderia ser um 'belo' que denuncie, com sua luz, a injusta vida? Será que divididos entre o 'meio e a mensagem' não estamos em lugar nenhum?". Mas aí não digo nada disso e respondo ao sujeito no botequim: "Cinema? É chato...tem de acordar muito cedo...".

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