São Paulo, quarta-feira, 28 de maio de 1997
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Caixa recupera obra politizada do artista

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Não é só "Nascimento". A PolyGram aproveita a onda e acondiciona numa caixa a parte que lhe cabe na obra de Milton Nascimento -que, diga-se, é a menos inspirada de toda a sua discografia.
Formatada em projeto horrendo -de um oratório fake, azulão e feito de papelão- e pecando por não dar ao consumidor a opção de adquirir avulsos os CDs, a coleção se subdivide em dois momentos.
Três dos dez discos são álbuns originalmente lançados no exterior pelo selo A&M (pertencente à PolyGram), que a gravadora afirma -incorretamente- serem inéditos no Brasil.
Não são: foram lançados aqui pela EMI, à própria época de suas edições (entre 69 e 79). Em geral, compreendem regravações -muitas delas em inglês- de sucessos anteriores de Milton (leia detalhes no quadro abaixo).
Os outros sete compreendem o período pós-EMI (que incluía a melhor fatia de sua criação, já em catálogo em CD), de 80 a 86.
É a fase em que Milton se atirou afoito ao ativismo político, que coincidiu com períodos como o da abertura política pós-79, o da campanha pelas diretas, o da ladainha que precedeu a morte de Tancredo Neves, em 84.
Nunca antes a história política do país influíra tanto na carreira de um artista, e isso pode ser percebido já em "Sentinela" (80).
Contém "Canção da América" (que já aparecera, em inglês, no disco de 79), futura loa mórbida a homens -Tancredo, Ayrton Senna- adorados mais pelo peso político/catártico que suas mortes imprimiram no imaginário popular que por outra razão.
Sucessos que Milton forjou nesse e nos anos seguintes -"Caçador de Mim" e "Nos Bailes da Vida" (de 81), "Anima" (de 82)- tornaram-se, a posteriori, hinos políticos, falassem o que falassem.
Tal se deu na militante "Missa dos Quilombos" (82) -passível de se tornar, em 97, hino aos sem-terra- e, em níveis extremos, no disco ao vivo de 83, em que ele, já no furor da abertura, gravou "O Menestrel das Alagoas" (toada de admiração dirigida ao político Teotônio Vilella) e ao futuro hino semi-oficial "Coração de Estudante".
Soubesse ou não, Milton passava aí a adotar o discurso oficial nacional, transmutando-se de autor sensível a poeta/porta-voz do Brasil oficial, uma Fafá de Belém menos trash. Foi, a um tempo, momento de auge de popularidade e de imersão na crise do afastamento da música em si.
O país recaía na mesmice política, com José Sarney, e Milton encontrou-se perdido, dono de discos que careciam do apelo imediato de mortes e causas políticas, ou então que as procuravam de forma já risível.
No primeiro caso estiveram o belo "Encontros e Despedidas" (85) e o ínfimo "A Barca dos Amantes" (86). No segundo, a canção "Carta à República", de um disco posterior, apelo estéril ao Brasil de Sarney.
Tudo isso seria só detalhe conceitual, claro, houvesse a música mantido o viço em fase tão turbulenta. Não aconteceu.
Em meio a momentos que ainda namoravam o sublime (como o dueto barroco "Sentinela", com Nana Caymmi) e à voz sempre inderrubável, tornaram-se abundantes os arranjos padronizados, ligados ao jazz masturbatório, dedicados a regravações de regravações, por vezes em discos mal gravados ("A Barca dos Amantes").
Não é de estranhar que, já na ressaca dos 80, com Collor, FHC e outros bichos, Milton buscasse uma reaproximação a seus anos de ouro -os 70- em "Txai" (90) ou "Nascimento" (97), de apego à terra e à natureza, como antes eram "Milagre dos Peixes" (73), "Minas" (75) e "Geraes" (76).
Encontros e despedidas à parte, a caixa-oratório é prova viva de seu envolvimento com suas convicções. Não poderia ter sido tranquila relação tão íntima autor/obra. E entre eles havia público, que acabou ficando mais arredio a Milton.

Caixa: Milton (dez CDs)
Artista: Milton Nascimento
Lançamento: PolyGram
Quanto: R$ 180, em média

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