São Paulo, quarta-feira, 28 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Novo CD gira tenso no toca-discos

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Descontadas as preocupações que sua saúde tem despertado Brasil afora, Milton, em "Nascimento", não deve conquistar novos fãs, não deve perder velhos fãs.
Milton Nascimento mais uma vez aponta firme na direção particular que vem tomando ao longo de sua carreira, de 30 anos, de se fechar em um universo íntimo muito mais que se expor à sanha pública.
Tal relação acarreta alguns paradoxos. Sempre inclinado a cantar "com a alma", volta mais cerebral que nunca, tocando cumes de distanciamento e frieza antes inalcançados. "Nascimento" não é um disco emocionado, e essa é das suas maiores virtudes.
Isso se ouve, em especial, nas faixas "Louva-a-Deus", "Janela para o Mundo" e "Os Tambores de Minas", feitas quase só de voz e percussão. São secas, sintéticas, concisas -incomuns em sua obra.
No mais, mergulha em si próprio de forma radical, tornando mais dura a dicotomia que muito o acompanhou -de artista ao mesmo tempo tomado de furioso ativismo político e profundamente dedicado a um mundo próprio, alienado, irrealmente bucólico, rupestre, até incivilizado.
Várias das canções, encerradas em si que são, padecem do anacronismo. "Cuerpo y Alma" e "Biromes y Servilletas", uruguaias, acenam a um mito de integridade latino-americana que não se via desde Glauber ou canções de seu próprio repertório ("Dos Cruces", "San Vicente"). Acabam traduzindo uma sensibilidade meio Mercosul, própria dos 90.
Corais infantilizados ainda inundam as canções, os arranjos flertam perigosamente com o kitsch.
Mais paradoxos: o arranjo padronizado de "E Agora, Rapaz?" (assemelhada à obra de João Donato) contrasta com o vocal corajoso do início da mesma canção, a capela, mais redondo e potente que nunca, em nada enfraquecido pelos abalos de saúde.
A banalidade épica da letra de "Guardanapos de Papel" conflita com a simplicidade doída de "O Rouxinol" ("Rouxinol me ensinou que é só não temer/ Cantou/ Se hospedou em mim").
O arranjo grandiloquente, quase cafona, de "Levantados do Chão" (parceria com Chico Buarque) briga com a sabedoria folclórica de "Os Tambores de Minas".
Somados todos os percalços, "Nascimento" é oscilante, gira tenso, sobe e desce. Mas se estabiliza e se equilibra em pontos nunca antes fixos em sua obra, como nos de puro apego dionisíaco do ritmo de "Louva-a-Deus", "Os Tambores de Minas" e "Janela para o Mundo" ("Cidadão do mundo eu sou/ Estrangeiro eu não vou ser").
Aí, aproxima-se como nunca da sombra onipresente da grande matriarca pagã da música brasileira, Clementina de Jesus. Fosse assim todo o disco, Milton teria se decidido, finalmente, pela natureza em detrimento da cultura -que é a contribuição que tem dado à canção popular nos últimos 30 anos. Clementina está ouvindo.

Disco: Nascimento
Artista: Milton Nascimento
Lançamento: WEA
Quanto: R$ 18, em média

Texto Anterior: Milton lança CD e diz não ter 'história triste para contar'
Próximo Texto: Discografia de Milton
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.