São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997
Texto Anterior | Índice

Uma festa: três grandes livros; Papéis do gás; Bruxaria; O onipresente; A história definitiva do sucesso do fracasso; O problema social da economia global; Um retrato da empresa do tráfico de gente; Paulo Brossard; Boas notícias

ELIO GASPARI

Uma festa: três grandes livros
É raro que aconteça coisa tão boa. Em apenas duas semanas, saíram três grandes livros. São diversos no gênero e na utilidade, porém idênticos no prazer que podem dar ao leitor.
Pela ordem de tamanho, são os seguintes:
"Che Guevara - Uma Biografia", do jornalista norte-americano Jon Lee Anderson;
"O Futuro do Capitalismo - Como as Forças Econômicas Moldam o Mundo de Amanhã", de Lester Thurow, professor de economia da escola de administração de empresas do Massachusetts Institute of Technology;
"Em Costas Negras - Uma História do Tráfico de Escravos entre a África e o Rio de Janeiro", de Manolo Florentino, professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Só os leitores compulsivos terão coragem de encarar os três, mas qualquer um deles haverá de fazer bem à alma de quem resolver atravessá-lo.

Papéis do gás
O secretário de Energia de São Paulo, David Zylberstajn, e a diretoria da Companhia de Gás, a Comgás, precisam erguer uma estátua ao burocrata desconhecido do Conselho de Defesa dos Capitais do Estado, Codec. Pelo seguinte:
Em março do ano passado, a Comgás aceitou uma engenhosa proposta de endividamento. Em vez de botar papéis no mercado, anteciparia vendas de gás a alguns de seus grandes consumidores. Captaria R$ 30 milhões a juros confortáveis e os banqueiros injetariam gás no mercado ganhando 5% de comissão. Dando tudo certo, faturariam R$ 1,5 milhão em 42 dias. (Todas as despesas, inclusive pareceres jurídicos, ficavam por conta da estatal.)
A diretoria da Comgás aceitou a proposta em 48 horas. Passada uma semana, por unanimidade, o Conselho de Administração, presidido por Zylberstajn, sancionou o negócio. A papelada passou por seis órgãos diferentes, mas carregava duas dúvidas:
Seria lícito vender gás por antecipação sem o processo de licitação pública? Um jurista dizia que sim.
Seria lícito contratar os intermediários financeiros sem licitação? Outro jurista dizia que sim. Entre outras razões, porque a Comgás informara que "após pesquisa em diversas instituições financeiras", recebera só uma proposta de intermediação. Amparava-se também na "confiabilidade e reputação ilibada dos contratados".
Em junho, o Codec pisou no freio e decidiu que o negócio só poderia ser feito se a consultoria jurídica da Comgás ou da Secretaria de Energia se manifestassem em defesa da legalidade da operação. Mais: o conselho de administração da Comgás precisava aprovar "expressamente" o negócio. (Parecer Codec nº 097/96.)
Nenhuma das duas coisas aconteceu.
A intermediação financeira da operação estava a cargo de Fausto Solano Pereira, da entidade Bradesco-Boasafra.
Em fevereiro deste ano, foram descobertas suas ligações com a emissão de títulos de Santa Catarina, onde os banqueiros também foram escolhidos sem licitação e deu no que deu. Solano é aquele financista em cuja conta um misterioso Renê depositou US$ 9,7 milhões.

Bruxaria
Para quem se diverte com previsões de economistas.
Em dezembro do ano passado, o Banco Mundial publicou um trabalho intitulado "O Milagre Econômico Tailandês". Seus autores, os economistas Peter Warr e Bhanubong Nidhitradha, listavam as virtudes do governo da Tailândia e concluíam:
"Não há nada nesse caso que os outros países em vias de desenvolvimento não possam copiar".
A Tailândia brincava com um déficit de conta corrente que chegara a 6% do PIB (Produto Interno Bruto). Sua moeda sofreu um ataque especulativo, e a esta altura o sistema financeiro tailandês foi à breca. Para quem quiser copiar, sua taxa de juros bateu a marca dos 1.000% ao ano.

O onipresente
O presidente da Associação Médica Brasileira, Antônio Celso Nassif, precisa de uma drenagem de ego.
A associação publica um jornal de 16 páginas e o doutor Nassif conseguiu o prodígio de, numa só edição, ter o seu retrato publicado 12 vezes. Seu nome vai mencionado 21 vezes, inclusive para informar que é candidato à reeleição. Virou o Jornal do Dr. Nassif.

A história definitiva do sucesso do fracasso
A biografia do Che Guevara é um milagre. Juntou uma vida fantástica numa obra impecável. O livro pesa quase dois quilos e pode se desmanchar antes da morte do Che.
Triunfo do fracasso, Guevara tinha 24 anos quando se formou em medicina e saiu pela América Latina a bordo de uma motocicleta. Aos 28 meteu-se numa guerrilha de cubanos contra um ditador ladrão e aos 31 entrou triunfalmente em Havana. Aos 36 largou tudo e voltou para o mato. Tinha 39 quando o assassinaram na Bolívia.
Frágil e asmático, o Che foi um anarquista para a velha ordem e um moralista intransigente no seu sonho comunista. Como presidente do Banco Central, assinava o dinheiro como "Che", usava a camisa para fora das calças e exercitava um corrosivo senso de humor. Recusava as mordomias socialistas e pedia a um amigo que o tirasse da mesa de um jantar em que o sentaram ao lado da deslumbrante filha de um embaixador (põe deslumbrante nisso): "Arranje uma desculpa e tire-me daqui antes que eu me renda. Não aguento mais".
Foi derrotado no Congo e na Bolívia. Quando o mataram, seus captores sabiam que tinham diante de si alguém mais fraco, porém maior. Filaram a história roubando-lhe os poucos pertences: dois relógios, um rifle e uma bolsa de fumo.
Anderson teve acesso a fontes inéditas. Sua narrativa da aproximação entre Havana e Moscou é o resultado de primorosa investigação. Alguns detalhes da crise de 1962, quando os russos puseram foguetes nucleares em Cuba e se chegou a poucos passos de uma guerra, são novidade até para os eruditos estudiosos do episódio. (É pena que tenha atribuído a renúncia de Jânio Quadros a um golpe militar, mas esse é talvez o único grave erro factual do livro.)
Para os cinquentões, contemporâneos de Guevara, o livro desvenda e sistematiza todos os mistérios que acompanharam seu retorno à floresta. Para quem está pouco ligando para velharias, é a história de uma aventura.
Quem quiser, pode fazer com Che o que muita gente faz com "Os Sertões". Lê primeiro a terceira parte, que vai da vitória da Revolução à sua morte. Depois, a segunda, onde está a guerrilha cubana. Se sobrar curiosidade, lê a primeira.

O problema social da economia global
A biografia de Guevara é um passeio romântico pelo passado do socialismo. Já "O Futuro do Capitalismo", de Lester Thurow, cuida do presente da economia mundial e do que pode vir pela frente.
É uma ordem econômica que entre 1973 e 1994 não criou um só novo emprego na Europa e derrubou em 11% os salários dos trabalhadores norte-americanos num período em que o PIB cresceu 29%.
Thurow sustenta que o processo de globalização está pendurado no lustre do déficit comercial dos Estados Unidos. Se os americanos pararem de comprar mais do que vendem, a bicicleta pára.
Ele questiona, com algum pessimismo, a sociedade que se está construindo no mundo desenvolvido.
Nos Estados Unidos, antes de completar 13 anos, uma criança já viu 18 mil assassinatos na televisão. Na Califórnia, gasta-se duas vezes mais com prisões do que com universidades.
Seu melhor momento é a demonstração de que o processo educacional de um jovem norte-americano, consumindo US$ 250 mil e 16 anos de estudo, está se tornando uma operação financeiramente improdutiva. Como os salários estão em queda e o diploma não garante emprego, pode virar mau negócio.
Thurow conclui que o capitalismo tem futuro, e muito, mas está numa das curvas da história em que são necessárias novas idéias e convicções para evitar uma grande crise. Quais, ele não sabe, mas vai buscar um exemplo em Cristóvão Colombo: "Ele não teve sucesso porque tinha sorte. Ele teve sucesso porque fez o esforço de partir numa direção nova, apesar da resistência de quem o ouvia".

Um retrato da empresa do tráfico de gente
Para quem quiser pisar fundo no passado, "Em Costas Negras" é um livro inesquecível. Ele chega ao circuito comercial depois de ter se esgotado, no ano passado, uma pequena edição do Arquivo Nacional. Numa academia em que se reciclam pesquisas e idéias velhas (muitas vezes erradas), Manolo Florentino produziu um brilhante retrato da empresa de tráfico de negros no Rio de Janeiro do final do século 18 e início do 19. Catalogou 1.100 entradas de navios que trouxeram 700 mil escravos e descobriu que os portugueses deixaram esse negócio nas mãos de uma classe empresarial nativa, dinâmica e próspera.
Num só ano, o tráfico movimentou recursos equivalentes a um terço do valor de todas as exportações de açúcar. Uma traficância de negros de Angola para o Rio rendia 20% do capital empregado, enquanto uma fazenda de café rendia 15%. O homem mais rico da colônia se chamava Brás Carneiro Leão e era traficante.
Rigoroso na exposição e com um impecável domínio do idioma, Florentino leva mais água para o desmanche da tese segundo a qual a economia brasileira era um apêndice irrelevante das transações centralizadas em Portugal. Outras pesquisas já indicaram que a burguesia mercantil carioca tinha um peso econômico semelhante à de Boston. O professor inglês Kenneth Maxwell sustenta, há mais de 20 anos, que a elite brasileira dos dias da independência era melhor preparada que a norte-americana. No currículo do mineralogista José Bonifácio cabiam vários Thomas Jefferson. Ademais, Andrada fez mais para acabar com a escravidão do que seu similar da Virgínia.
Obras como a de Florentino levantam a suspeita de que a tal "herança ibérica" de que tanto se reclama, é uma simplificação. O confusão é brasileira mesmo.

Paulo Brossard
(72 anos, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e da Justiça)
*
-O que o governo deve fazer para conter as invasões dos sem-terra e sem-teto?
-Tem que fazer cumprir a lei. Acredito que houve uma inflexão no comportamento do governo, lastimo que tenha demorado, mas espero que persista. Há uns dois anos houve uma marcha de produtores rurais em direção a Brasília. Reclamavam dos juros extorsivos. Quando chegaram à capital, o presidente não os recebeu e os chamou de caloteiros. Há pouco, ele recebeu uma delegação de sem-terra. Funcionou aí um mecanismo de dois pesos e duas medidas. Um cidadão sentou-se à mesa do presidente da República com um boné na cabeça. Isso é uma completa impropriedade. Eu uso chapéu e não entro numa casa sem tirá-lo. Está em curso um processo de erosão da autoridade. Já invadem terras com dia e hora marcadas. Depois das fazendas, passaram a invadir imóveis urbanos. Quanto falta para que invadam automóveis? Isso acaba mal, muito mal.
-O que significa acabar mal?
-Em 1964 havia um pessoal que saía pelo país gritando que a reforma agrária seria feita "na lei ou na marra". Na marra, o que tivemos foi a ditadura e essas mesmas pessoas passaram 20 anos chorando. O processo de instalação da violência se dá aos poucos, é quase imperceptível. Primeiro se diz que os invasores são pessoas expulsas de suas terras pelos grileiros, depois se vê que há invasões com gente recrutada em outros Estados. Se o senhor dá a outra pessoa a prerrogativa de transgredir a lei, não vá supor que mais adiante haverá de contê-la. Quem acha que pode transgredir uma lei acaba se julgando no direito de decidir quais leis cumpre e quais desrespeita. E aí, repito, a coisa acaba mal.
-O que deveria fazer o governo?
-Tem de garantir o cumprimento da lei. Não nos esqueçamos que a invasão de propriedade é um dos poucos casos em que o Código Civil admite a legalidade da reação da vítima. Esses invasores, trazidos de outros municípios, são posseiros sem posse, figura semelhante à do fazendeiro do ar. Existem porque a lei está desconceituada. Um governo pode tolerar semelhante situação, mas jamais haverá proprietário que a admita. Um colapso como o de 1964 não ocorre de repente. Os absurdos vão se tornando familiares e só quando a casa cai é que se percebe o tamanho do erro cometido. Não digo que estejamos num caminho semelhante. Digo apenas que não devemos nos esquecer do que já sofremos.

Boas notícias
Coisas boas estão acontecendo na administração das prefeituras.
Sete municípios de São Paulo estão organizando um consórcio para tratar da saúde. Juntam recursos e iniciativas, fazem economia e melhoram os serviços. Por exemplo: com um só desembolso de R$ 1,5 milhão, colocarão em Americana uma máquina de tratamento de lixo hospitalar que atenderá três municípios.
Com a ajuda do governo paulista, 200 prefeituras conseguiram lugar para 18 mil crianças que ficaram sem vagas na rede de primeiro grau das escolas municipais.
Araçatuba legalizou o primeiro sistema mototáxi do país. A corrida custa R$ 1, e 900 motos de 80 empresas atendem pelo telefone.
Essas novidades ganharam notoriedade porque o jornalista Roberto Muller Filho botou no mercado a publicação "O Prefeito", destinada a administradores municipais.

Texto Anterior: Como funciona o"trunking" digital
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.