São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997
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A anatomia das atitudes raciais

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O filósofo Kwame Anthony Appiah, que estará participando de uma série de eventos no Rio e em São Paulo a partir de 2 de junho próximo, tem chamado a atenção internacional pela novidade de suas idéias sobre a cultura global.
Nascido em Kumasi, Gana, filho de pai ganês e mãe inglesa, e hoje professor de estudos afro-americanos na universidade de Harvard, EUA, Appiah transita com rara facilidade entre culturas tradicionais da África e teorias ocidentais.
Evidentemente, isso não implica suavizar o embate entre os dois lados, dos quais Appiah tem que se aproximar necessariamente por meio da questão racial. Em seu livro "Na Casa de Meu Pai", a ser lançado em breve no Brasil pela Editora Contraponto, a pretexto da questão racial, o autor promove uma ampla revisão da filosofia ocidental desde os gregos até os pós-modernos.
Nesse movimento, solidamente apoiado numa vasta erudição, Appiah não se limita a apontar o papel central do conceito de raça no pensamento ocidental, sobretudo a partir do Iluminismo, mas detecta sua penetração no ideário que pretendia devolver uma identidade autônoma aos povos africanos, em particular nas escolas do pan-africanismo e da negritude.
As contradições que surgem no decorrer das análises não são poucas, entre elas, a multiplicidade cultural da África em contraposição à necessidade de se criar uma identidade continental. Appiah enfrenta essas e outras equações com a proposta de "uma forma não sentimental de humanismo africano", que supere a questão racial e coloque a África como parceiro igualitário no sistema global.
Em entrevista exclusiva à Folha, Kwame Appiah ofereceu detalhes esclarecedores sobre suas idéias.
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Folha - Seu livro, "Na Casa de Meu Pai", é notável, antes de tudo, pela abrangência multidisciplinar, envolvendo aspectos da história, da literatura, da antropologia e, principalmente, da filosofia. Haveria uma ambição de redefinir as disciplinas mencionadas (além de outras) pela reavaliação de seus cânones a partir do ponto de vista africano?
Kwame Appiah - Minha intenção no livro era refletir sobre a situação dos intelectuais da África subsaariana, que, segundo creio, estão colocados, de um lado, entre a herança indígena das culturas pré-coloniais do continente e, de outro, a modernidade européia e americana. Para compreender essa situação, é preciso pensar sobre como a idéia de África foi formada nos debates entre os povos negros do Novo Mundo, os africanos e a cultura ocidental dominante (que concebe a si mesma como branca).
Essa idéia é resultado de muitos discursos -literários, biológicos, antropológicos e assim por diante-, portanto senti que teria que abordá-los todos, com o máximo de habilidade. Estou inteiramente convencido de que essa discussão é da maior importância não apenas para os intelectuais negros, mas para todos os intelectuais.
Porém eu não estava especialmente preocupado em reavaliar os cânones ocidentais; e, para ser franco, não costumo pensar a partir de um ponto de vista africano. Há muitos pontos de vista na África, e o meu próprio, como o de qualquer intelectual contemporâneo na era da globalização, é formado a partir de uma variedade de lugares.
Folha - O senhor traça uma "anatomia das atitudes raciais", segundo a qual são definidos três conceitos principais: racialismo, racismo extrínseco e racismo intrínseco. Qual seria o uso prático de tais categorias, já que as três parecem estar intimamente interligadas?
Appiah - Eu estava tentando fazer duas distinções sobre aquilo que se pode chamar de racismo. Primeiramente, a diferença entre a simples crença na realidade biológica das raças -que eu chamo de racialismo- e a crença de que é correto tratar as pessoas distintamente, dependendo de sua raça -que eu chamo de racismo.
Depois, dentro do racismo, distingui a espécie de racismo baseado na idéia de que se deve tratar diferentemente pessoas de raças diferentes, porque algumas raças são, de fato, superiores ou inferiores, o que chamei de racismo extrínseco; e o pressuposto de que alguém deva tratar membros de sua própria raça diferentemente de outras pessoas, tanto quanto deva privilegiar sua própria família, só porque são membros de sua raça ou família, o que seria o racismo intrínseco.
Essas distinções têm uma importância prática, porque a resposta intelectual para o racialismo e o racismo extrínseco é mostrar que eles estão errados: as raças não são biologicamente reais, e não há provas para a afirmação de que algumas raças são objetivamente inferiores a outras. Já a resposta para o racismo intrínseco é o argumento moral de que está errado tratar melhor ou pior as pessoas por conta de algo tão superficial como a raça.
Folha - O senhor critica os mentores da negritude e do pan-africanismo com o argumento de que eles adotaram conceitos raciais criados pelos brancos. Qual foi a real contribuição desses movimentos para a construção de uma nova consciência africana?
Appiah - Minha crítica à negritude a ao pan-africanismo não se deve ao fato de eles terem adotado conceitos raciais dos brancos, embora o tenham feito. É que esses conceitos estão errados e levam a erros morais e políticos. O fato é que a comunidade intelectual sobre a qual eu estava falando foi criada a partir de um senso de unidade racial, e muito do progresso político na África, inclusive a solidariedade na luta contra o colonialismo europeu, que só terminou realmente quando Mandela subiu ao poder, partiu desse senso de unidade. E esse senso de unidade também ampliou a comunicação no mundo negro do Atlântico -o que inclui não apenas a África e o Brasil, mas também a América do Norte, o Caribe e os povos de descendência africana na Europa-, uma comunicação muito rica, que resultou em grandes conquistas literárias e culturais.
Folha - O senhor faz uma interessante ligação entre raça, nação e literatura no Ocidente. Poderia resumi-la?
Appiah - Acho que a ligação entre raça e nação é relativamente familiar para a maioria dos povos modernos: a construção da teoria e da prática da nação-Estado no Iluminismo europeu pressupunha que uma comunidade natural de sangue, chamada nação, deveria ser posta sob uma ordem política única, o Estado, a fim de expressar sua verdadeira natureza. Eis basicamente o argumento de Herder e Hegel. No século 19, com a ascensão da antropologia e biologia modernas, essa comunidade sanguínea veio a ser pensada cada vez mais em termos raciais. Ao mesmo tempo, no Iluminismo, desenvolveu-se a idéia de que a literatura -a poesia e as narrativas populares, que em inglês chamamos agora de contos e canções folclóricas- é a mais elevada expressão do espírito nacional, o que está profundamente ligado à língua nacional. Assim formou-se a idéia de Herder do "Sprachgeist", o espírito da língua, que se encontra expresso na poesia nacional.
O resultado desses dois argumentos é que raça e literatura acabam por se ligar, pela idéia intermediária de nação. Eis, essencialmente, o conjunto de ligações que cria a negritude, mas a negritude é apenas a elaboração de idéias que já estavam presentes na teoria européia. Lendo-se a "História da Literatura Inglesa", escrita por Hippolyte Taine em fins do século 19 -que, embora francesa, é a primeira verdadeira história da literatura inglesa-, trata-se da expressão do espírito da raça anglo-saxônica na literatura.
Folha - Com referência ao "pós-modernismo" e ao "pós-colonialismo": em que medida essas duas teorias são aplicáveis à África atual?
Appiah - Essa questão é muito complicada. Tentando simplificar, porém, acho que o que agrega todos os fenômenos da pós-modernidade é o papel da diferença na economia. Como digo no livro, "para vender-se e vender um produto como arte no mercado, o produtor deve, antes de tudo, abrir um espaço no qual ele se diferencie dos demais produtores e seus produtos, e isso se faz pela construção e exposição das diferenças". Ora, isso é tão verdadeiro na África como em qualquer lugar. Mas a rejeição das narrativas principais, que Lyotard tornou central em sua compreensão da pós-modernidade, não é, no meu entender, um traço central da vida intelectual africana (e vem sendo, segundo creio, cada vez mais rejeitada por intelectuais da Europa e dos Estados Unidos). Assim, na África pós-colonial, vivemos num espaço cultural formado pela mesma necessidade de diferenças na economia e no mercado cultural; mas não encontramos o mesmo pós-modernismo. Pode-se chamar isso de pós-modernidade sem pós-modernismo, e acredito que isso é o que cada vez mais se vê fora da África.
Folha - Em que medida a "identidade" africana é uma realidade ou uma ficção?
Appiah - O problema da expressão "identidade africana" é que sugere que somos já africanos e que só temos que descobrir o que isso significa. Ao contrário, penso que a identidade africana é algo que temos que criar e que são muitas as possibilidades e questões não respondidas. Temos que produzir nossas identidades, elas não estão nos esperando em algum lugar, como um velho par de sapatos no armário, que basta encontrar, polir e usar!
Folha - No final de seu livro, o senhor propõe uma espécie de aliança utópica entre os africanos e os afro-descendentes das Américas e da Europa. Acha que existe alguma chance real dessa aliança se efetuar algum dia?
Appiah - Acho que a unidade na diáspora africana é um dos meios pelos quais poderíamos desafiar o poder global do racismo contra o negro. Devo, porém, acrescentar que seria conveniente aliarmo-nos com os anti-racistas de todas as cores nessa luta. Seria utópico esperar que todos se unissem, mas não acho que seja utópico confiar na aliança entre povos negros de vários lugares. Isso já aconteceu quando africanos e afro-americanos trabalharam juntos para o fim do apartheid e a criação da Namíbia. Então, isso pode acontecer de novo em torno de problemas específicos. E espero que continue a acontecer.

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