São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997
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Otimistas, pessimistas e anestesistas

GUSTAVO FRANCO

O Real está prestes a completar três anos, período no qual o crescimento foi contínuo, ainda que não "milagroso", coisa que o país não experimentava havia uma década e meia. De fato, não estamos crescendo feito "tigres asiáticos", tampouco repetindo, nessa matéria, nossos melhores momentos, já bem distantes, verificados numa época em que inflação e distribuição do "bolo" não eram preocupações relevantes.
As circunstâncias são, de fato, muito diferentes, mas prevalece a sensação de que estamos prontinhos para um novo "milagre", faltando apenas aos gestores da economia apertar os botões corretos. Será mesmo? O que estará nos impedindo de reeditar o "milagre"?
Primeiramente, o debate sobre essas questões parece perder de vista que o país não cresce desde o início dos anos 80, década marcada por episódios de hiperinflação e recessão, temperados por choques e calotes, como parte de um experimentalismo econômico sem precedente, tudo isso produzindo uma brutal redução nos investimentos e na competitividade, além de uma deterioração considerável no plano social.
Não foram poucos os que diagnosticaram essa década como perdida em função do esgotamento do modelo de desenvolvimento de então, fenômeno que se expressava pela crise fiscal e pela falência das políticas comercial e industrial próprias da chamada substituição de importações. A instabilidade macroeconômica que marcou os anos 80 aos olhos desses observadores era, portanto, consequência de doença muito grave, que, infelizmente, o Brasil relutou até onde possível em encarar.
O problema apenas se agravou com as repetidas tentativas de fingir que não estávamos doentes, mediante o recurso a "planos heterodoxos", os quais, como se sabe, atacavam apenas a superfície do problema e mereceram do saudoso professor Simonsen a descrição: "anestesias sem cirurgia". Foram enormes o tempo desperdiçado e o sofrimento gerado em tentar evitar o enfrentamento de questões como o desequilíbrio fiscal, a reforma no Estado e a redefinição de nossa inserção externa.
É interessante relembrar essas duras lições de nossa experiência, a fim de colocar em perspectiva o debate recente sobre as limitações ao crescimento.
As posições parecem polares, ao menos numa primeira observação. De um lado, um grupo grande e heterogêneo de otimistas, junto aos quais se alinham os "heterodoxos" (ou "anestesistas"), a argumentar que, ao fim das contas, não há nada a impedir o crescimento de atingir níveis asiáticos senão o "modelo de estabilização".
O problema estaria na medicação -nas chamadas "âncoras"- e não na doença; o paciente estaria debilitado apenas por culpa dos médicos e seus antibióticos. Os problemas na raiz da Década Perdida, que ocasionaram tantas dores de cabeça, teriam desaparecido, sabe-se lá como, de modo que bastaria modificar "o modelo de estabilização", vale dizer, "ajustar" câmbio e juros, que o "milagre" estaria de volta.
Do lado pessimista, prevalece o sombrio diagnóstico de que as doenças que causaram a Década Perdida (incluindo a crença indevida nas virtudes terapêuticas da anestesia ou do banho frio) ainda estão bem vivas entre nós.
Governos, em todos os níveis, que não sabem viver dentro de seus próprios meios, a predileção pela tributação do pobre pela inflação, ou das gerações futuras por dívidas caras para financiar a gastança presente, a apropriação privada de recursos públicos, fiscais e regulatórios, a força de corporações predadoras enfeitadas em bandeiras nacionalistas, privilégios escalafobéticos para algumas castas de servidores públicos, ativos e inativos, nada disso parece coisa do passado.
E isso para não falar em lideranças empresariais que se acostumaram com o que Celso Furtado chamou de "socialização das perdas", vale dizer, o uso da desvalorização cambial para estender para toda a sociedade os custos de problemas setoriais.
Os pessimistas -especialmente os que estão no governo, os quais, ao contrário do que se pensa, são pessimistas de ofício- acreditam que a doença está bem viva e que ainda há muito o que fazer. Que, para recuperar nossa capacidade de crescer e atacar o problema social, temos de livrar o Estado do parasitismo que o debilitou e o transformou em uma máquina de socialização de custos de privilégios particulares.
Os pessimistas observam a experiência internacional e percebem que se contam nos dedos de uma mão os países que cresceram a taxas muito altas por períodos prolongados, e todos em função de circunstâncias extremamente favoráveis, aí incluindo fatores demográficos, logísticos, institucionais, formidáveis taxas de poupança (doméstica e externa), estabilidade macroeconômica, finanças públicas em ordem, investimentos pesados (durante muito tempo) em educação, tecnologia e infra-estrutura, regimes comerciais abertos e um entorno favorável.
Os pessimistas acham que o Brasil, nos últimos anos, perdeu diversos desses ingredientes para um "milagre" e que não temos, ainda, condições de reproduzir a experiência dos "tigres". Claro que podemos recuperar a mistura vencedora, mas certamente não se trata de projeto de curto prazo, especialmente quando, previamente a grandes ambições nesse domínio, ainda é preciso gastar algum tempo terminando com a hiperinflação, empreendimento, convenhamos, nada trivial.
Os pessimistas não são de nutrir ilusões sobre uma rápida reconstrução do crescimento acelerado, mas, por acreditar na medicina que praticam, são otimistas a médio prazo. Sabem que os remédios funcionam e que é preciso paciência, virtude em que os nossos otimistas não são pródigos.
Por outro lado, justiça seja feita, não é correto tomar todos os otimistas como "anestesistas". Na verdade, da esmagadora maioria dos otimistas, o que mais se ouve é algo como "o Brasil é lento para se reformar, é preciso andar mais rápido para chegar ao médio prazo com mais segurança". Nada diferente do que os pessimistas (de ofício) no governo vivem a repetir.
Contudo essas mesmas coisas, ditas pelos "otimistas" com embocadura de observadores independentes ou ar mal-humorado, parecem indicar que essa gente discorda fundamentalmente do que vem sendo feito ou seria capaz de fazer melhor. A resposta à pergunta sobre as alternativas faz crer que não é bem assim. Nada a estranhar. Ninguém gosta de concordar com o governo.

Gustavo H.B. Franco, 41, é diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.

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