São Paulo, quarta-feira, 4 de junho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

INÉDITO DE LYA

LYA LUFT

"'Sua literatura fala de mulheres', disseram ao me apresentarem num seminário. Fiquei refletindo sobre o que se tornaria o desencadeador deste texto, pois em minhas histórias não aparecem só mulheres mas homens e crianças, casas com sótãos e porões, dramas ou banalidades. Falo também do estranho atrás de portas, mortos que vagam e vivos que amam ou esperam. Escrevo sobre o que me assombra como na infância. Escrever para mim é indagar: continuo a menina perguntadeira que perturbava os almoços familiares querendo saber tudo, qualquer coisa, o tempo todo.
Falo do estranho que somos: nobres e vulgares, sonhadores e consumidores, soprados de esperança e corroídos de terror, por trás do ombro sempre a grande Espreitadora que nos levará um dia, tornando-nos memória, e finalmente -quando se forem os que nos amaram talvez nada.
'Mas você escreve mais sobre mulheres', insistem. Se as mulheres são mais intensas em meus livros, talvez seja porque o ficcionista é também um ator: sou (e não sou) meus personagens. Sei tudo a seu respeito: o que sentem, pensam, temem ou desejam. São pedaços meus, fantasias e medos, frustrações e desejos, são aquilo que se remexe atrás das frestas do chamado inconsciente -não apenas meu, mas da minha gente, porque todo escritor fala por muitos. Sei, de muitas criaturas, muito mais do que expresso em linhas ou silêncios -sempre o mais importante de um texto: sei se aquela mulher usa algodão ou sedas, se a escada range quando ela caminha -ainda que nenhum desses detalhes apareça no romance. Conheço as tristezas daquele homem, sei se cultiva medos secretos, se pensa na morte, se desejaria ser mais amado. E quando começo a 'ser' essa pessoa, quando o clima da obra me envolve e me arrasta, chegou o momento em o livro quer ser escrito. Estarei aberta a ele, deixarei que as criaturas subam das profundezas do caldeirão de bruxas que é experiência e alucinação, memória e invenção (...), e tentarei dar-lhes voz na minha voz. 'Como uma espécie de possessão -você sente como se estivesse incorporando alguma entidade?'- me perguntou um dia um universitário."

Texto Anterior: Geração de Lispector produz literatura superficial
Próximo Texto: Revista 'Sexta-Feira' é lançada no MAC
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.