São Paulo, quinta-feira, 5 de junho de 1997
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Brincadeira

MOACYR SCLIAR

- Quer dizer que o senhor se hospedou num hotel em Israel e se assinou como Adolf Hitler.
- Brincadeira. Eu sou músico, o senhor sabe, um artista. E os artistas são, por natureza, brincalhões. Brincamos com as notas, brincamos com os nomes... Então me assinei como Adolf Hitler. Brincadeira, apenas.
- Mas parece que sob o nome o senhor colocou uma suástica.
- Brincadeira. A suástica, o senhor sabe, é um antigo símbolo oriental. É uma figura interessante, parece um cata-vento girando. Uma coisa lúdica. Nós, os artistas, gostamos das coisas lúdicas. Mas é por causa do espírito de brincadeira.
- E sob a suástica o senhor desenhou um forno crematório.
- Um forno crematório, não. Desenhei um forno. O forno, o senhor sabe, pode ser usado por artistas. Por escultores, por exemplo. O escultor faz uma peça em argila, e aí o que ele faz com ela? Coloca-a no forno. É até uma coisa lúdica, o senhor sabe? As crianças, inclusive, gostam muito. Agora, se o forno pode ser usado para cremar alguma coisa, isso eu não sei. O uso do forno é uma decisão pessoal.
- Mas a Ópera de Berlim resolveu expulsar o senhor.
- Pois é. E o senhor sabe por que isso acontece? Por duas razões. Em primeiro lugar, a Ópera de Berlim não tem espírito lúdico, não sabe o que é uma brincadeira. Parece mentira, mas é verdade. Um lugar que deveria acolher os artistas, com todas as suas peculiaridades, que deveria tolerar os brincalhões...
- Bem. E a segunda razão?
- A segunda razão é a seguinte: todo o mundo sabe que a Ópera de Berlim é dominada pelos judeus. Aliás, não só a Ópera de Berlim. Todas as óperas. A música inteira. Mendelsohn, quem era? Judeu. Jasha Heifetz? Judeu. Barenboim? Judeu. Os judeus estão por toda a parte. Na música, nas artes, na imprensa, nos governos. Os judeus dominam o mundo. Adolf Hitler estava certo: para acabar com eles, só levando as suásticas a toda a parte. Para acabar com eles, só o forno crematório.
- É brincadeira, o que o senhor está dizendo?
- É. É brincadeira. Que pena, não é? É brincadeira.

O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às quintas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

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