São Paulo, sábado, 7 de junho de 1997
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A lição do mistério

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Tomei conhecimento da existência de frei Damião durante a campanha eleitoral que elegeu Collor. Até então, nunca tinha ouvido falar dele. Agora, com a sua morte, o frade capuchinho foi tratado como um fenômeno. Tem tudo para entrar na história oficial do Nordeste brasileiro.
Está sendo feita a aproximação de sua imagem com a de outro fenômeno popular, que é o padre Cícero. Pode-se recuar no tempo e aproximá-lo também de Antônio Conselheiro, outro pregador apocalíptico que criou adeptos e mártires, ele próprio mártir da campanha equivocada de uma República que tinha medo do Império e promoveu o holocausto de Canudos, temendo a volta da monarquia.
Frei Damião, com exceção da campanha de Collor, na qual foi envolvido ingenuamente, ignorava o fato político. O problema dele era viver e exprimir a religião que aprendera no seminário italiano, baseada em normas oriundas do "Syllabus" de Pio 9º, conjunto de regras simples e tradicionais, de fácil compreensão, mas de difícil (senão impossível) execução.
Apesar dos anos passados no Brasil, não dominava o português. Nos sermões que fazia, nas confissões que ouvia, poucos entendiam o que ele falava e muitos desconfiavam de que ele não compreendia bem o que estava ouvindo.
Não era problema. Antônio Conselheiro também adotava uma linguagem cifrada, seus discursos nem sempre eram entendidos. Tanto no caso de Damião como no do Conselheiro, o povo procurava captar não as palavras, mas o exemplo de austeridade que deles emanava, o visual ascético, a pregação exaltada separando o bem do mal, a graça do pecado, o céu do inferno.
Fala-se em transparência neste final de século. Tende-se a vulgarizar a palavra herdada da tradição, transformando-a em mensagem mercadológica. A veneração popular dedicada a frei Damião é uma prova de que o mistério continua perturbando a alma humana.

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