São Paulo, domingo, 8 de junho de 1997
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O caráter político da língua

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"A Aventura das Línguas no Ocidente", de Henriette Walter, é uma obra surpreendente. Quando me propuseram resenhá-la, a partir do título, pensei comigo: "Mais um livro de divulgação do indo-europeu. OK. Parece fácil, e tenho de fazer jus ao meu salário". Não estava de todo errado. É de fato, em grandes linhas, uma obra de divulgação do indo-europeu, mas de uma maneira toda especial.
A maioria dos textos do gênero costuma, nos níveis mais elementares, tentar explicar o que é o indo-europeu (poupo aqui o leitor de maiores considerações sobre essa protolíngua e seu papel ou importância; Walter introduz o assunto com muito mais competência) e descrever de modo mais ou menos sucinto seus descendentes vivos -que vão do russo ao português, passando pelo inglês e a maior parte das línguas e dialetos hindus e persas.
As obras de divulgação intermediárias ainda arriscam incursões em idiomas já extintos, como hitita, lídio, lício, luvita ou mesmo o tocariano (descoberta relativamente recente de língua indo-européia falada no Turquestão chinês), os quais têm extrema importância para a linguística histórica e a arqueologia, mas quase nada significam aos leitores leigos -presumivelmente aqueles que procuram os textos de divulgação.
Classificar obras mais avançadas como "de divulgação" seria um contra-senso e uma traição aos grandes mestres da linguística histórica.
Walter tem uma proposta ao mesmo tempo muito mais modesta e ambiciosa. Seu centro de interesse são os idiomas da Europa dos 12 (agora já são 15, mas o que em nada altera a substância) e tratá-los de modo vivo e não apenas enfadonhamente descritivo na sintaxe ou nos fenômenos fonético-morfológicos.
Assim, ao passo que hoje o vitalíssimo tronco eslavo (russo, tcheco, eslovaco, polonês, búlgaro, servo-croata, entre outros) é praticamente ignorado, o basco (língua aliás não-indo-européia) ou o bretão (ambos falados apenas em cantinhos da Europa e sem expressão nacional) são tratados até mesmo em suas variações dialetais.
Aqui, ao cair no mesmo vício de busca de abrangência da maioria dos linguistas históricos, acabo sendo injusto com a obra de Walter.
Seu livro, diferentemente da maior parte de seus congêneres, circunscreve a geografia, mas amplia o conceito político da integração linguística -ainda que às vezes "manu militari"- dos povos.
Explica fenômenos curiosos e desconhecidos do leigo, como, por exemplo, o de que o francês, quando acredita estar falando a sua língua, está proferindo nomes célticos (sobretudo quando se refere à denominação de um local) ou mesmo emitindo verdadeiras frases germânicas, ainda que com uma pronúncia bastante diversificada.
A procura da vivacidade das línguas de Walter vai ainda mais longe. Lembra, por exemplo, o general francês De Gaulle, que afirmava ser impossível administrar um país que produz mais de 350 tipos de queijos. Supera o famoso militar e explica, numa verdadeira aula de culinária, que os italianos possuem mais de mil tipos de massas, dando excelentes explicações para a origem ou existência de boa parte delas.
Em termos de toponímia (nomes de lugares) esclarece, mas isso não é exclusividade sua, que as relações entre os diversos povos ou pelo menos o substrato que deixaram é muito mais profunda do que a maioria poderia supor.
Todos os tão fartos nomes de lugares ingleses terminados em "chester" são na verdade designações latinas ou híbrido-latinas, nas quais o sufixo "chester" significa em latim "castra" (acampamentos militares); mas não se iluda o leitor, mesmo o termo "castra" não era sinônimo de guerra (não nessa época, um pouco anterior ou posterior ao período cristão), mas principalmente de um entreposto comercial no qual os diversos povos trocavam mercadorias e palavras, e não apenas flechadas e similares.
Valem aqui algumas palavras de louvor ao tradutor, Sérgio Cunha dos Santos. Tradutores e lexicógrafos devem sentir-se felizes quando não recebem críticas. Mais difícil, contudo, é conseguir traduzir-adaptar uma obra de línguas comparadas entre dois idiomas tão próximos como o francês (original) e o português sem cometer (permito-me o espanhol) "tonterias", tarefa em que o vertor foi extremamente hábil, conseguindo escapar da grande maioria dos erros ou tautologias tão comuns quanto extremamente difíceis de erradicar nesse tipo de tarefa.
A obra de Walter ainda é ousada a ponto de incluir, bem ao estilo francês, quadros lúdicos e de explicações (muitas vezes fontes de piadas as mais infames, embora com boa dose de razão), nos quais informações úteis e pertinentes são fornecidas de forma fácil de lembrar.
Enfim, para o leigo ou até mesmo para o mais renomado especialista, o livro de Walter, mesmo quando entra no jocoso, está a nos lembrar que o fenômeno linguístico é antes de tudo um fenômeno político, lembrança esta extremamente oportuna às vésperas da consolidação da União Européia, possivelmente a primeira tentativa de unir o continente de forma pacífica.

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