São Paulo, domingo, 8 de junho de 1997
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O PLANO MARSHALL

Duas memórias póstumas e algumas lembranças pessoais

ALBERT O. HIRSCHMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lembro-me da ocasião em que, há dez anos, ocorreram várias comemorações do 40º aniversário do Plano Marshall. Quando perguntei pela razão de tal voga, a explicação provou ser simples e convincente: disseram-me que, 40 anos depois dos acontecimentos, muitas das pessoas que haviam desempenhado papéis importantes ainda estavam "na ativa" e poderiam ter histórias interessantes para contar, por terem estado no auge de suas vidas -contavam entre 30 e 40 anos- à época dos fatos que então se comemoravam. Por essa mesma razão, a maior parte delas já teria "partido" quando chegasse a hora do cinquentenário.
Hoje, completados os 50 anos, não posso deixar de reconhecer que padecemos de uma relativa desvantagem "etária" em comparação aos grupos que chegaram a se reunir dez anos atrás. Entretanto ocorreu-me que, em compensação, nosso grupo conta com uma vantagem comparativa passageira, mas real: pode bem ser que já tenham partido alguns dos palestrantes que gostaríamos de ver aqui, mas alguns participantes de relevo naqueles acontecimentos deixaram-nos algumas recordações e memórias que não eram disponíveis dez anos atrás. De fato, hoje podemos tirar proveito dessa situação: dois dos principais protagonistas do Plano Marshall, Robert Marjolin, pelo lado franco-europeu, e Richard Bissell, da parte dos EUA, vieram a morrer na última década, mas ambos nos legaram memórias praticamente concluídas, que chegaram sem problemas à forma de livro. Permitam-me relembrar rapidamente quem foram essas pessoas.
Robert Marjolin, que havia trabalhado como economista e editor de jornal antes da guerra, ingressou no movimento França Livre do general De Gaulle após a derrocada francesa de 1940, passando boa parte da guerra em Londres e Washington, onde tornou-se estreito colaborador de Jean Monnet -na ocasião, o responsável da missão comercial francesa nos Estados Unidos. Logo após o fim da guerra na Europa, quando De Gaulle se tornou presidente da França, Jean Monnet foi encarregado de montar um novo plano para "Aparelhamento e Modernização" e Marjolin assumiu o cargo de adjunto de Monnet. Uma vez que a França dispunha de um tal programa de recuperação nacional, era natural que o mesmo mecanismo fosse adotado tão logo a Europa Ocidental como um todo fosse chamada pelo Plano Marshall a definir um plano conjunto de reconstrução. Sendo assim, Marjolin foi nomeado secretário geral -e de fato demonstrou ter o espírito de liderança- da Organização para a Cooperação Econômica Européia de 1946 a 1955, exercendo posteriormente a vice-presidência da Comunidade Econômica Européia, entre 1958 e 1967. Seu livro, publicado postumamente em 1986, recebeu o título pertinente de "Le Travail d'une Vie" (O Trabalho de Uma Vida, Paris, Robert Laffont).
Richard Bissell havia sido professor de Economia no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) antes da guerra, integrou o War Shipping Administration (órgão encarregado do envio de suprimentos para guerra) durante o período do conflito e o Office of Mobilization and Reconversion (Comissão de Mobilização e Reconversão) no período de transição para a paz. Paul Hoffman, importante fabricante de automóveis, fora nomeado em 1948 o primeiro coordenador do Plano Marshall -ou seja, diretor da recém-criada Economic Cooperation Administration (Secretaria de Cooperação Econômica). Pediu então que Bissell assumisse como seu adjunto e coordenador assistente para programas. Bissell tornou-se o líder intelectual reconhecido e enérgico porta-voz do órgão durante as sessões de sua formação no Congresso. Suas memórias, igualmente póstumas, ganharam o título surpreendente de "Reflections of a Cold Warrior" (Reflexões de um Protagonista da Guerra Fria, New Haven and London, Yale University Press, 1996). É mais provável, creio eu, que a escolha do título tenha sido feita pela Yale University Press, e não pelo próprio Bissell, uma vez que reflete sobretudo o período pós-Plano Marshall de sua carreira. Em 1954, ele ingressou na CIA (Agência Central de Inteligência), onde organizou as missões aéreas com os aviões de espionagem U-2, vindo posteriormente a comandar a fracassada operação na Baía dos Porcos, em Cuba. Esses fatos certamente encobriram para o grande público dos Estados Unidos o papel notável que Bissell desempenhara anteriormente na Europa. Mas quem o conheceu àquela altura tende muito mais a concordar com o que ele mesmo escreveu na introdução ao brilhante capítulo sobre o Plano Marshall: "O desafio e o estímulo que eu sabia que viveria convenceram-me a deixar a academia para depois... o que se seguiu foram talvez os anos mais valiosos da minha carreira" (op. cit., pág. 29).
Seria uma tentação escrever um texto para esta ocasião com o único objetivo de comparar os capítulos dos livros de Marjolin e Bissell que discutem o Plano Marshall. É o que farei de início, embora várias lembranças pessoais devam imiscuir-se no relato. Superficialmente, nossos dois protagonistas tinham muito em comum. Ambos haviam conquistado posições-chave semelhantes, mais ou menos na mesma idade (Marjolin aos 39 e Bissell aos 41). Ambos eram economistas cuja formação -como era normal no período imediatamente após a Segunda Guerra Mundial- tinha fortes raízes na doutrina keynesiana e, consequentemente, na crença no valor da intervenção governamental. No entanto, as páginas iniciais desses livros evidenciam imediatamente diferenças substanciais quanto ao passado acadêmico e social de cada um. Bissell era o representante típico da classe média alta. Seu pai fora importante executivo na área de seguros, em Hartford, Connecticut. Seguindo os padrões tradicionais, Bissell fizera o segundo grau em Groton e a faculdade em Yale. Mais tarde, no auge da Depressão, passou um ano na London School of Economics. Sobre esse período, escreve: "Fui para Londres como republicano, simplesmente por uma lealdade política herdada. A campanha de Roosevelt e posteriormente seus primeiros anos na presidência causaram um impacto. Acreditava profundamente que muitas das coisas que ele fazia eram construtivas e necessárias e passei a acreditar na importância daquele tipo de intervenção governamental na economia" (op. cit., pág. 11). No ano seguinte, retornou aos Estados Unidos para continuar seus estudos em economia, em Yale, e logo passou a lecionar, com considerável sucesso, o primeiro curso de economia keynesiana de Yale.
Diferentemente de Bissell, Marjolin recebera uma formação que, de ortodoxa, não teve nada. A grande surpresa que seu livro causou em seus antigos amigos, como eu mesmo, foi mostrar o nível econômico e social extremamente baixo de que emergira. Nos dias de hoje, seria rapidamente incluído na categoria agora conhecida na França como "les exclus" (os excluídos) e, nos Estados Unidos, como "underclass". Felizmente, esses termos ainda não haviam sido inventados, e Marjolin descreve de forma fascinante nas primeiras 50 páginas de seu livro como conseguiu "chegar lá" -em grande parte à margem dos padrões formais de escolaridade. A história é bem parecida com a contada de forma tão comovente por Albert Camus em seu romance póstumo lançado recentemente, "Le Premier Homme" (O Primeiro Homem). Tanto Marjolin quanto Camus descrevem como suas mães ajudaram a engordar o orçamento familiar, lavando roupa para fora. Nas duas carreiras, papéis decisivos foram desempenhados por professores ou mentores que souberam reconhecer o talento daqueles jovens.
Neste ponto, devo inserir um breve parágrafo autobiográfico: conheci Marjolin em Paris, em 1938, quando os novos decretos anti-semitas de Mussolini forçaram-me a regressar à França, depois de uma estadia de dois anos na Itália. Essa fora minha segunda emigração; a primeira havia ocorrido em 1933, quando, com a ascensão de Hitler ao poder, deixei minha Berlim natal e fui para Paris. Na ocasião de minha volta a Paris, eu tinha 23 anos, e Marjolin ofereceu meu primeiro emprego, como o especialista em Itália na "L'Activité Economique", uma revista trimestral sobre novas tendências econômicas na Europa, dirigida por ele para o novo Institut de Recherches Économiques et Sociales (Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais), patrocinado pela Fundação Rockefeller. Aos 28 anos, ele não revelava nenhum traço de sua educação não-ortodoxa; ao contrário, parecia-me um verdadeiro "patron" (patrão), talvez um pouco cordial demais para com um recém-chegado. Só quando tive permissão para conhecer o verdadeiro "patron de la maison" (dono do negócio) -ninguém menos do que Charles Rist, o eminente economista e ex-presidente do Banco Central da França- pude compreender que havia muitas variedades de "patrons" neste mundo.

Continua à pág. 5-5

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