São Paulo, segunda-feira, 9 de junho de 1997
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Khouri cria 'sono da morte' em 26º filme

DENISE MOTA
DA REDAÇÃO

Diretor usa Shakespeare em 'Paixão Perdida', filme com Antonio Fagundes e, provavelmente, Vera Fischer

O mundo imaginário do cineasta Walter Hugo Khouri ganhou mais uma crise existencial. E técnica.
Técnica porque a atriz Vera Fischer, convidada para protagonizar o novo filme de Khouri, "Paixão Perdida", adiou o início das filmagens de suas cenas por conta da doença da mãe (que sofre do Mal de Alzheimer) e de uma pneumonia, da qual está se recuperando.
Mas a produção do longa garante a participação da atriz, que começa a filmar na segunda semana de julho.
Existencial porque, pelos próximos dois meses, o diretor vai se debruçar sobre roteiro que escreveu baseado em trecho de um monólogo de Hamlet, aquele em que o angustiado personagem shakespeariano questiona "que sonhos poderão vir do sono da morte".
Em "Paixão", orçado em R$ 1,4 milhão, o diretor de 67 anos retoma a trajetória de seu sempre-presente alter ego Marcelo Rondi, desta vez interpretado por Antonio Fagundes.
O filme narra a história do filho de Marcelo, Marcelinho (Fausto Carmona), que vivenciará o sono de que tratava Shakespeare.
Perturbado psicologicamente após a morte da mãe (Vera Fischer), o garoto é tratado por uma enfermeira (Mylla Christie), que se apaixonará por Marcelo. Está deflagrado o conflito.
Após ser tachado de alienado, nos anos 60 -por não se envolver no cinema novo-, e pornô-chique, nas décadas seguintes, Khouri coloca, novamente, tudo o que caracterizou sua carreira: belas mulheres, relações mal resolvidas, vazio espiritual, tensão.
"Não consigo fazer outra coisa", diz o cineasta, que já se prepara para engatar mais quatro projetos.
Após "Paixão Perdida", Khouri planeja lançar "As Feras", finalizado em 1995 (leia texto abaixo), e filmar os longas-metragens "Il Fuoco", "Febre" e "La Flame" (A Chama), co-produção com a França para a qual pretende convidar atrizes como Juliette Binoche ou Irène Jacob.
"Não é pretensão", avisa -já com o pé atrás- quem se sabe um caso à parte na cinematografia nacional. De São Paulo, o diretor concedeu à Folha a seguinte entrevista.
*
Folha - Do que trata o filme?
Walter Hugo Khouri - É um filme zen, sobre sentimentos. É a história de um garoto diante do pai, Marcelo, diante da mãe, que morreu, e diante do mundo.
Não sei inventar outra coisa. Não consigo fazer filmes sobre um índio ou um astronauta.
Folha - Marcelo Rondi está em diversos de seus filmes. Qual o dilema do personagem desta vez?
Khouri - Marcelo já apareceu em uns 15 filmes meus. Ele corresponde à minha vida, é uma projeção. É inquieto, indeciso, ambicioso. Agora, ele é pai de um garoto problemático. Em "Il Fuoco", um de meus próximos filmes, ele tem a mulher que sofre um atentado.
Mas em "Paixão Perdida", o personagem principal é o Marcelinho, o filho dele, que não quer viver porque a mãe desapareceu. Ele quer entrar no vazio, no não-ser. Até que aparece uma moça que dá vida a ele.
Só que a moça vai acabar se fascinando por Marcelo, e é aí que o garoto tem sua paixão perdida novamente e volta para o vazio. O filme é sobre o ser/não-ser.
Folha - Um drama de conotação hamletiana...
Khouri - Exatamente. O filme é baseado em um pedaço de "Hamlet", que diz: "For in that sleep of death what dreams may come?"("Do sono da morte, que sonhos poderão vir?"). Ou seja, talvez seja melhor não-ser, que é o tema central do zen. Pode parecer pretensioso, mas não é. É um filme difícil. Para as mulheres, diz coisas fundamentais.
Folha - E Vera Fischer vai estar mesmo em seu elenco novamente?
Khouri - A Vera tem problemas de agenda. Então, fiz um prospecto para ela, em que ela é a lembrança do garoto. Mas ainda estamos com problemas porque a mãe da Vera está doente, então... Reescrevi a história por conta desses compromissos. Vai começar só com a mãe e um rosto de criança dormindo, as evocações dele. Então, há um estrondo de automóvel, a criança acorda e, então, não há mais mãe. É um filme sobre a possibilidade do encontro. Modéstia à parte, é um dos melhores roteiros que já escrevi.
Folha - O que vem depois de "Paixão Perdida"?
Khouri - Nosso próximo filme deve ser o "La Flame" (A Chama), uma co-produção francesa, com locações em castelos medievais. Tem temática mais religiosa, é uma mulher que se queima em busca da complementação espiritual. Aí tem o "Il Fuoco", de que estávamos falando, e "Febre", que é uma história de como as coisas tomam caminhos errados. Um publicitário se envolve com uma moça que mexe com umbanda. Então, ela faz uma oferenda, e ele utiliza isso para um trabalho dele. Só que ela sobe. Ele vai para o vinagre. O roteiro não está inteiro ainda.
Folha - Nos anos 60, o sr. ia contra a corrente, ao recusar a estética do cinema novo. Agora, com a volta de uma variada produção nacional, o sr. não considera ser este o melhor momento para suas obras serem compreendidas?
Khouri - Muita gente me diz isso. Eu não mudo, não mudei e não vou mudar. Sou um só e a indústria é um todo. Nasci em São Paulo, sou um ser urbano. Minha mãe era italiana, aprendi a falar italiano antes de falar português. Meu pai também não era brasileiro. Meu universo é esse. Estudei filosofia e procuro ser fiel a mim mesmo. Se isso ainda for contra a corrente, faz parte do jogo da vida.
Folha - O sr. começou sua carreira como assistente de Lima Barreto, durante "O Cangaceiro". Não foi influenciado em nada?
Khouri - Lima tinha um temperamento muito diferente. Trabalhei com ele muito pouco, decidi sair, e ele me disse: "A melhor coisa que você fez foi deixar de ser meu assistente porque você é muito pretensioso". Depois que fiz "Noite Vazia", ele foi até a minha casa e disse: "Você fez o melhor filme brasileiro a que assisti até hoje". Se tive alguma influência, foi saber que o diretor tem que se impor. Não pode ter aquela coisa de obra coletiva. Existem diretores que ficam pensando: "Ai, meu Deus, o que é que o ator vai pensar, o assistente etc.". Em um ano que trabalhei com Lima, aprendi que, se o diretor fizer uma porcaria, tem que ser a porcaria dele.

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