São Paulo, quarta-feira, 11 de junho de 1997
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Documenta olha para Godard

CELSO FIORAVANTE
DA REPORTAGEM LOCAL

Catherine David, curadora da Documenta, a mais importante mostra mundial de arte contemporânea, destacou, em entrevista por telefone à Folha, os valores éticos -e não apenas estéticos- da cultura.
O evento, que inicia sua 10ª edição no próximo dia 21, tem forte presença da arte brasileira -com obras de Hélio Oiticica, Lygia Clark, Tunga e Cabelo.
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Folha - O que seria mais importante para a Documenta: descobrir e apresentar talentos contemporâneos ou discutir as perspectivas da cultura, em eventos como "100 Dias - 100 Convidados"?
David - As duas opções se completam. Tenho a impressão que a mostra é uma forma histórica e modernista de apresentação e de representação e que é uma forma que não está mais adaptada à cultura contemporânea.
Por isso me parece que a exposição deve ser acompanhada e prolongada em um outro espaço, que é o espaço do discurso, do debate e, eventualmente, da polêmica.
E como essa Documenta é a última do século, supõe-se que colocará muitas questões concernentes à ética e à estética hoje.
Folha - Se você tivesse que escolher qual o artista mais importante deste século, como ele estaria representado nessa Documenta? Ele seria Duchamp...?
David - É muito difícil dizer. Para mim seria muito difícil nomear apenas um. Certamente Duchamp é um artista importante, e acredito que seja possível dizer que existe hoje uma herança Duchamp, uma sensibilidade Duchamp, uma conceito Duchamp... Mas me parece que o século foi suficientemente intenso para se permitir vários grandes artistas.
Eu não sei qual seria a filiação da Documenta, mas é claro que ela não pretenderá reconstruir toda a história da arte deste século. A questão hoje é saber qual o lugar e a função da estética na sociedade e na cultura contemporânea.
Mas se hoje é possível citar Duchamp, eu também diria Godard. Nesta Documenta, Godard é imediatamente visível. Sua questão se interessa pelo pensamento, pelo método, pela poética, pela política. E isso tudo de Godard me interessa também. Em todo caso, eu não sei se Godard é o maior artista, mas é uma figura muito importante para mim neste século.
Folha - Segundo você, é possível fazer uma mostra como a Documenta sem considerar aspectos políticos e econômicos do mundo?
David - Seria absurdo fazer uma Documenta sem se interrogar sobre essas questões. É preciso saber olhar e representar o mundo. Não é possível não ver que na África acontecem coisas inaceitáveis. Mas não é convidando um artista de Ruanda que vou resolver a questão.
Folha - Mas como o Terceiro Mundo pode ser olhado com o mesmo olhar dispensado ao Primeiro Mundo? É possível ter um olhar imparcial? É tudo a mesma coisa?
David - Não, não é tudo a mesma coisa. Mas se trata da mesma coisa quando se percebe que a modernização é um fenômeno muito complexo e que toca todo o mundo hoje. Os países do centro como os países da ex-periferia sofrem operações muito complexas de descentralização. E o centro hoje, a partir do momento em que os mercados estão totalmente dispersos e são submetidos a estratégias do capital que não têm nada a ver com um lugar fixo ou com uma identidade nacional, nos coloca questões muito complexas.
Não podemos mais falar de Terceiro Mundo. Existe esse fenômeno global que se chama modernização. É, sem dúvida, muito interessante medir os efeitos políticos, econômicos e culturais da modernização. Não é mais possível contrapor arte produzida no Primeiro ou no Terceiro Mundo.
É importante perceber que muitos lugares do mundo precisam de atitudes e não de bienais ou mostras de arte. Mas isso não nega o fato que existem pessoas que produzem ali idéias e fenômenos que tratam de estética.
Folha - Como a arte está globalizada se nem todos têm acesso a todos os tipos de informação?
David - A globalização não quer dizer uniformização. A globalização é uma rede que articula diferenças muito complexas.
Acredito que a modernização é justamente uma articulação difícil de representar, com valores e procedimentos muito locais unidos a fenômenos de velocidade e dinâmica cada vez mais globais.
Não fazemos a guerra no Punjab da mesma maneira que fazemos no Oriente Médio ou na África, embora todas matem muita gente. A guerra é um bom exemplo, embora não seja um belo exemplo.

LEIA MAIS sobre a Documenta à pág. 4-7

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