São Paulo, sexta-feira, 13 de junho de 1997
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"Um Céu de Estrelas" confronta solidão social

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

"Um Céu de Estrelas" pode ser descrito como a vitória do imperfeito sobre o perfeito.
O cinema brasileiro atual (pós-Collor) tem se empenhado numa disputa de gato e rato com o público. Produtos recentes, como "O Que É Isso, Companheiro?", "Pequeno Dicionário Amoroso", "Ed Mort", têm em comum -à parte virtudes e defeitos- a preocupação de "estar à altura" do mercado.
O filme de estréia de Tata Amaral funda-se sobre outros critérios: há o desejo da diretora de se expor, de cavoucar um terreno intocado, de mostrar algo que não pode ser mostrado a não ser em imagens.
Graças a isso, "Um Céu de Estrelas" termina por tornar aceitáveis os seus defeitos. O filme trata do quase sequestro por Vítor (Paulo Vespúcio Garcia) de sua ex-quase noiva, Dalva (Alleyona Cavalli), e passa-se no interior da casa da moça, no bairro da Mooca, São Paulo.
Para quem não é de São Paulo, a Mooca é um bairro de classe média da zona leste e, vista das regiões mais "cultas" da cidade, um reduto de valores tradicionais, de certa selvageria que rege as relações sociais no Brasil (isto é, onde se manifesta, culturalmente, a opressão de ricos sobre pobres).
Será justo o espectador observar que a cenografia um tanto teatral, muito pontuada por objetos que são signos, antes de serem coisas, nos remete a uma Mooca concebida na Vila Madalena ou outro reduto de artistas.
A radical diferença entre estilos de viver, no interior da cidade, interfere na concepção do filme, um tanto artificial nesse aspecto.
Esses defeitos são fartamente compensados, no entanto. Primeiro, por um roteiro seco, que se recusa a ser maior do que é (o filme tem cerca de uma hora) e se apóia em diálogos vivos e precisos ao construir os personagens. Em seguida, por uma direção que enfatiza a crueza das relações entre o homem e a mulher -perdidos na selva da mediocridade- e a impossibilidade de diálogo entre os universos masculino e feminino, a partir do uso frenético da câmera, como se esta incorporasse o "mal de viver" dos personagens.
E cada personagem -Vítor e Dalva- permanece encerrado em si mesmo, em um conjunto de fantasmas alimentado ao longo da vida, enquanto a câmera de Tata Amaral investiga os espaços de sua forçada coabitação e evoca os mistérios de cada um, mas não para expô-los, antes para velá-los. O filme chama o espectador, assim, a confrontar a boçalidade e a violência em estado puro.
Não aprendemos nada sobre elas, mas esse talvez seja o maior mérito do filme: criar um espelho em que se fixam as solidões e os abismos da sociedade brasileira, povoada por valores parciais. O impasse vivido pelos personagens não é tão diferente, afinal, daqueles com que topamos diariamente, quase sem perceber. Trazê-los à tona não será uma virtude menor dessa belíssima estréia de uma diretora muito promissora.

Filme: Um Céu de Estrelas
Produção: Brasil, 1996
Direção: Tata Amaral
Com: Alleyona Cavalli, Paulo Vespúcio Garcia, Ligia Cortez
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco 2

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