São Paulo, sábado, 14 de junho de 1997
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O espelho de Monet

LORENZO MAMMÌ

Entre os eventos artísticos brasileiros recentes, bienais à parte, a exposição de Monet foi a que recebeu a maior cobertura de imprensa. Merece, porque as telas enviadas pelo Museu Marmottan são belíssimas e marcam um momento crucial da pintura moderna. O único problema é que seu número é pequeno para que o evento se caracterize como uma megaexposição -rótulo que o investimento de dinheiro e mídia parece exigir. O próprio museu francês tentou contornar essa limitação, enviando, junto com as telas de Monet, algumas caricaturas (dispensáveis) da fase juvenil do artista e 18 telas que pertenciam a sua coleção particular, além de material documentário.
O Museu de Belas-Artes do Rio de Janeiro e o Masp de São Paulo buscaram engordar mais ainda a exposição, pescando em seu próprio acervo. O Museu do Rio optou por uma seção dedicada aos "impressionistas brasileiros", bastante confusa e equivocada, e por algumas encenações francamente kitsch: a reconstrução da sala de jantar de Monet, um café em estilo francês e assim por diante. O tom geral pode ser deduzido pelo catálogo da exposição carioca, confuso também ele e muito poluído visualmente.
O Masp, que dispõe de uma coleção mais significativa de obras francesas modernas, se saiu bem melhor, embora a exposição paulista proporcione uma leitura um tanto conservadora, voltada mais para o que Monet deve a seus predecessores do que para o que deixou para as gerações seguintes.
O público de São Paulo visita a exposição do Masp, mas têm à mão o catálogo do Rio de Janeiro. Há portanto uma superposição de leituras, devida a escolhas de curadores diferentes, entre as quais é necessário se nortear, tentando completar o mosaico com peças que, por falta de obras disponíveis, estão subentendidas. Vem aqui uma sugestão de roteiro, que é também, obviamente, uma leitura pessoal, entre as muitas possíveis.
Começando pelas salas dedicadas à pintura francesa do século 19: a tese que justifica essa parte da exposição é que os meios expressivos do impressionismo evoluiriam gradativamente a partir da pintura romântica e realista francesa. É uma hipótese sensata, embora sua verdade seja mais evidente para Renoir, o mais culto dos pintores impressionistas, do que para Monet. Há porém o risco de encobrir o que o impressionismo representou em termos de ruptura. As pinturas expostas de Delacroix -que, aliás, parecem mais "impressionistas" do que realmente são, por serem inacabadas- mostram um traço livremente colorista que deriva da pintura barroca de Rubens, assim como a linha precisa e fria de seu antagonista Ingres deriva da pintura barroca de Poussin. Há portanto, de um lado, uma arte cartesiana, que nomeia as coisas uma por uma; de outro, uma arte, digamos assim, gongórica, que indica as coisas por metáforas: uma pincelada verde alude a uma folha, um pingo de preto a um olho e assim por diante. O objeto da representação são sempre as coisas do mundo, e eventualmente a habilidade do artista em representá-las por traços rápidos e elipses poéticas. Isso vale ainda mais para realistas como Courbet, que buscaram se livrar das regras clássicas, mas nunca renunciaram a um ideal de representação objetiva.
Duas telas tardias de Manet marcam claramente a transição para uma nova estética: uma delas representa uma mulher a cavalo, a outra, um caçador de leões. Nos dois casos, a figura principal é vista de viés ou, para usar um termo técnico, em "scorcio": o cavalo nos vira as costas, voltando-se para a alameda no fundo; o caçador está ajoelhado, com uma perna para frente e o fuzil apontado na nossa direção. São ângulos difíceis de representar, mas Manet não resolve o problema com a perspectiva ou o claro-escuro. Utiliza grandes áreas de preto praticamente uniforme, o que torna as figuras muito achatadas, como se, apesar dos contornos que sugerem profundidade, elas estivessem inteiramente no primeiro plano. Paradoxalmente, esse caráter bidimensional não as torna mais irreais, e sim mais presentes, como se pulassem para fora do quadro. De fato, Manet não achatou as figuras para estilizá-las, mas para reproduzir a impressão imediata que temos delas, a mancha de cor que se deposita nos olhos antes que reconstruamos mentalmente as noções de profundidade e volume. Nesses quadros a questão central já não é a reprodução mais ou menos metafórica da realidade, e sim as impressões visuais subjetivas. O quadro já não equivale a uma janela aberta -e sim à superfície da retina.
Quando Manet pintou essas telas, no começo da década de 1880, o impressionismo já tinha alcançado a maturidade. O mais antigo dos quadros de Monet na exposição, "A Primavera Entre os Galhos" (1878), mostra que o artista já estava um passo adiante na mesma direção. A pintura de paisagem tradicional punha com frequência árvores no primeiro plano. Normalmente, estão próximas às bordas do quadro e servem para dar a medida da profundidade -um tipo particular de "scorcio". No quadro de Manet, ao contrário, as árvores correm de um extremo a outro da tela, formando uma cortina uniforme de folhas.
Essa disposição proporciona à superfície material do quadro uma evidência palpável, enquanto a pintura tradicional buscava torná-la invisível; ao mesmo tempo, permite resolver a ilusão de profundidade numa série de "flashes" luminosos, cada um correspondendo a uma pincelada de cor -as verde-escuro das folhas entremeadas pelas mais claras do fundo. Assim, é possível olhar esse quadro de duas maneiras diferentes: ilusionisticamente, como paisagem, acrescentando mentalmente noções de volume e distância que estão subentendidas; ou literalmente, como série de manchas de cor dispostas no plano, pondo entre parênteses as referências figurativas. Uma ou outra leitura prevalece, dependendo da nossa posição em relação à tela. Isso acontecia também nas telas tradicionais, mas antigamente buscava-se uma distância ideal (variável, dependendo dos estilos) em que a ilusão de profundidade fosse perfeita. As obras impressionistas, ao contrário, renunciam à distância ideal, ou melhor: a distância ideal, nelas, é aquela em que as duas possibilidades (leitura em profundidade e leitura no plano) estão presentes simultaneamente.
Renunciando a compor mediante o desenho e o claro-escuro, Monet passou a construir o quadro pelo equilíbrio das cores, procurando mediações sempre diferentes entre tintas puras, sem misturá-las. Isso o levou a soluções colorísticas inauditas, mas a estrutura compositiva de seus quadros permaneceu bastante indeterminada. Com efeito, o segundo quadro de Monet nessa exposição, em ordem de antiguidade ("Braço do Sena em Giverny", de 1885), volta a um esquema tradicional: uma construção em diagonal, com uma árvore em primeiro plano -elementos que derivam da pintura barroca.
Para fugir do perigo de um retorno às convenções acadêmicas, Monet, como outros impressionistas, recorreu ao exemplo da gravura japonesa, que proporcionava esquemas formais variados e vivos, alternativos ao espaço unificado de tipo renascentista. Curiosamente, a composição japonesa parecia mais próxima do que a européia à recém-descoberta fotografia. Degas, que era também um excelente fotógrafo, foi o impressionista que mais apreendeu com os japoneses. O Masp dedica uma sala a essas gravuras. A influência delas é menos evidente em Monet do que em Degas ou Toulouse-Lautrec, mas a decisão de mostrá-las foi apropriada, porque o Museu possui um dos quadros do artista em que a lição japonesa, via Degas, está mais claramente presente: "A Canoa Sobre o Epte", de 1890.
Do ponto de vista museológico, a sala que abriga esse quadro é a mais bem trabalhada da exposição. As fontes são identificadas com clareza em gravuras japonesas da coleção do artista, e a evolução do quadro é acompanhada pelos cadernos de esboços. Cabe apenas acrescentar que o quadro mostra, na superfície escura da água e na vegetação igualmente escura, que a saturação da cor chegara a um ponto limite. O trabalho não se sustentaria se Monet não tivesse inserido o evento repentino, e no fundo anedótico, da chegada do barco com as duas moças. O artista partira de uma revolução radical e aos poucos se vira obrigado a recuperar elementos exteriores de composição (não importa se originários da arte ocidental ou japonesa) para resolver questões estruturais que não conseguia solucionar em termos de pincelada e cor.
Isso, no entanto, não explica a extraordinária eflorescência da última fase do artista -a não ser, talvez, em negativo, pelas limitações que o próprio Monet via em seus trabalhos anteriores. As últimas obras devem ser lidas em termos de ruptura, e não de continuidade. É preciso lembrar que esses quadros foram pintados depois das vanguardas históricas e do cubismo analítico -de fato, a única falha importante da exposição do Masp é não ter estabelecido uma relação clara entre essas telas de Monet e a produção de vanguarda contemporânea a elas.
Antes de falar disso, é necessário limpar o terreno de um lugar-comum da crítica: o de que o estilo da última fase de Monet dependeria em grande parte de problemas de visão. De fato, no fim da vida, os olhos de Monet foram gravemente afetados por cataratas. Mas isso não explica muita coisa. Deficiências de visão já foram sugeridas para justificar as últimas obras de Ticiano e a pintura de El Greco. Tais explicações surgem da opinião ingênua de que os pintores pintam o que vêm, e não o que querem que a gente veja. De fato, se um pintor tiver sua visão prejudicada, é lógico supor que confiará sobretudo no que já sabe, apoiando-se com maior insistência em procedimentos já experimentados. Se Monet se jogou com tanta ousadia numa nova aventura, é porque sentia a urgência de uma renovação apesar de seus problemas visuais, com a afobação que só os gênios velhos costumam ter.
Os cubistas tinham voltado a pensar a pintura como "cosa mentale", segundo a famosa definição de Leonardo. A composição do quadro, para eles, era feita de idéias, não de impressões. Linha, cor, claro-escuro eram vocábulos que o pintor utilizava para construir uma argumentação, um discurso. Uma pintura cubista precisa sempre de decifração, é impossível olhá-la de imediato. Monet era um pintor antiintelectual, mas não um pintor ingênuo: à pintura-argumentação dos cubistas opõe uma pintura-fluxo de consciência. Vejam-se por exemplo as "Ninféias", de 1916-19, ou "Ninféias - Reflexos de Salgueiro": a superfície da água, perfeitamente vertical, corresponde à superfície do quadro. Não há mais problema de profundidade porque tudo o que aparece está aquém desse plano: as plantas que se refletem na água são representadas por pinceladas verticais; as ninféias apoiadas sobre a água, por pinceladas horizontais. Para além da superfície, não há nada que seja visível.
Assim, no final da vida, Monet parece ter descoberto algo que estava implícito em sua arte desde o início: as sensações visuais não são enviadas para nós pelo mundo, mas somos nós mesmos que as projetamos no mundo. O plano da tela não é um filtro que transmite o mundo exterior para nós, mas um espelho que nos devolve nossas próprias sensações. E esse espelho ainda faz parte da nossa consciência, porque ele é fluido, vivo. A pintura se estrutura por novelos de pinceladas que se expandem em direção às margens. Para evitar uma ilusão de objetividade, Monet deixa as bordas em branco. O quadro, assim, nunca é acabado -continua se expandindo.
A novidade das últimas telas de Monet passou despercebida até a década de 40, quando artistas e críticos da Escola de Nova York começaram a se interessar por seus grandes campos de cor e emaranhados de linhas. De fato, olhando para as duas "Aléias das Roseiras" ou para o "Salgueiro chorão" de 1921-22, é impossível não pensar nos "all-over" de Jackson Pollock. A partir daí, toda a pintura da segunda metade deste século deve alguma coisa ao último Monet. O Masp não poderia mostrar um Pollock, porque não há tela de Pollock no Brasil. Mas seria interessante ver essas telas ao lado, por exemplo, de um Iberê Camargo.

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