São Paulo, sábado, 14 de junho de 1997
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A mais cega sinceridade

RODRIGO LACERDA

este autor marcou presença na literatura brasileira a partir da publicação de seu primeiro livro, "Malagueta, Perus e Bacanaço", em 1963, até "Dama do Encantado", seu último. Isto apesar de longos intervalos de recolhimento e pouquíssima produção. Seus textos mais representativos mostram por quê. A recriação que fez da vida e da linguagem dos marginalizados urbanos, cheios de misérias e grandezas, era muito bem feita para que passasse despercebida.
Além do conhecimento de causa que tinha -ele próprio de família humilde, subempregado por boa parte da juventude e frequentador por anos a fio das rodas da malandragem-, também algumas influências literárias e musicais contribuíram para que João Antônio escrevesse como escrevia e sobre o que escrevia. Entre elas, ao longo de seus mais de 10 livros, foram mencionadas figuras como Marques Rebelo e Graciliano Ramos, de um lado, Noel Rosa e Pixinguinha, de outro.
Pairando acima de todas, verdadeiro paradigma intelectual e emocional de João Antônio, estava a figura de Lima Barreto. Foi o mulato pré-modernista quem incutiu nele a exigência de só escrever com "a mais cega e mais absoluta sinceridade". Foi quem lhe deu a motivação para recriar a linguagem das ruas e, mais ainda, quem lhe serviu de modelo na relação entre autor e sociedade. Em Lima Barreto, João Antônio reconheceu o sentimento de exclusão, de desconfiança em relação à sociedade, de revolta, de recalque pela cor ou pela formação cultural precária na infância e na juventude pobres.
Contudo, até o aparecimento de "Dama do Encantado", publicado pouco antes de sua morte, João Antônio nunca havia delineado com tanta nitidez o seu panteão artístico particular ou permitido que se visse, com tanta clareza, a razão de suas preferências. Já neste novo livro, dos 13 textos reunidos, nove são retratos: sete, de artistas a quem admirava (Nélson Rodrigues, Mário Quintana, Joubert de Carvalho, Dalton Trevisan, João do Rio e Lima Barreto), e dois, um auto-retrato literário e um retrato de Garrincha.
A busca pela sinceridade absoluta e o esforço por evocar o sentimento de exclusão social moldaram a natureza dos textos de João Antônio. Ora são reminiscências, quando o autor fala de sua infância pobre e de seus tempos de quartel; ora contam aventuras vividas pelos personagens do submundo, quando cede a palavra aos próprios; ou ainda constituem textos de denúncia, quando reproduz entrevistas ou depoimentos. Os mesmos ideais moldaram seu estilo. Ele é feito de frases curtas, tem um ritmo quebrado, usa gírias e, ao mesmo tempo, faz vibrar uma nota de lirismo, de arroubo nostálgico, de sofrimento e melancolia. João Antônio empregava todos os recursos de que dispunha a fim de criar uma total identificação entre o autor e os objetos de sua literatura.
Tão longe foi nessa empreitada, que obteve algo parecido a transcrições de uma linguagem oral. Mas, embora elas ocorram de fato, não se deve subestimar a forte dose de racionalização e o grande esforço de composição literária evidentes em sua obra. Sua linguagem é sincera, mas não improvisada. Ela se libertou das normas do bem escrever, mas é de uma economia intencional e de um impacto detalhadamente planejado. Ao recriar o discurso das ruas, de modo a inspirar no leitor a sensação de estar ouvindo seus personagens falarem, João Antônio transformou seus textos em espaços sempre abertos às vozes marginalizadas, mas, simultaneamente, em obras literárias de nítida marca autoral.
A precocidade com que realizou seu projeto literário acabou tendo consequências em sua produção posterior. Certamente que a estimulou e permitiu que se desenvolvesse pautada por uma coerência invejável. Mas vinculou-a a uma fixidez no espectro social e, até certo ponto, na vida. "O marginal, o leão-de-chácara, o sinuqueiro, o jogador de sinuca, o mendigo, podem ter momentos épicos", dizia João Antônio, justificando sua opção pelo universo dos marginalizados. Porém, ao se fazer um levantamento em sua obra, verifica-se que inexiste qualquer texto no qual o ponto de vista de outra classe social seja o valorizado, ou que esteja centrado nos dramas dos "integrados" à sociedade. Os sinuqueiros não só podem ter momentos épicos, eles são os únicos a tê-los; este é o mote de João Antônio. O temperamento de sua obra é claramente maniqueísta, e com muito orgulho.
Uma vez comprometido em exprimir os marginalizados, e com seu próprio estilo já tão definido, escassearam na obra de João Antônio as oportunidades para experimentar fora desses limites. Entre outras coisas, não teve muitas chances para falar mais longamente de suas influências artísticas, para trazer a público o que se poderia chamar de sua erudição. Seu estilo e sua "missão" como escritor eram impermeáveis a requintes explícitos. Ele era a voz dos que não tinham referências e, para sê-lo com absoluta fidelidade, mostrava pouco as referências que já trazia da juventude e o enriquecimento natural de sua vivência como escritor. Seu estilo passou 30 anos intocado pelo tempo, e sua erudição, 30 anos como objeto de alusões circunstanciais. Até "Dama do Encantado".
Neste novo livro, mesmo nos quatro textos de natureza mais frequente em sua obra -um de reminiscências e três de flagrantes do cotidiano da cidade-, mudanças podem ser verificadas, ou só no estilo, ou na relação entre o autor e seu tema, ou em ambos. Por exemplo, nos textos "Almas da Galera" e "Pingentes", que negam a empatia absoluta entre o autor e seus objetos. Não é sobre a sua vida que João Antônio fala, mas ele também não empresta sua voz a ninguém, nem como ficção, nem como denúncia. O escritor, o morador de Copacabana, bota em perspectiva os marginalizados e fala de suas dificuldades sem a contundência de antes. Ele se transforma num cronista. Solidário, até indignado, mas "apenas" cronista.
Nos retratos, aumentam as diferenças entre esse último livro e a obra anterior. Os contornos formais do estilo apresentam mudanças sensíveis. As frases são longas como nunca haviam sido. Os parágrafos idem, compondo fluxos narrativos caudalosos. A erudição de João Antônio aparece com largueza, ilustrando sem esnobar. Perdeu espaço a objetividade com que descrevia seus personagens, suas características físicas, roupas e trejeitos. No último livro, os integrantes de seu panteão vêm descritos com mais largueza e emoção. Percebe-se uma adesão pacificada à filosofia de vida de seus retratados, menos torturada que a estabelecida entre o autor e seus personagens do submundo.
Ainda que cada um dos retratos literários mereça uma leitura detalhada, percebe-se o denominador comum entre eles, e que os liga também à galeria dos personagens de João Antônio. Os seus "merdunchos" de antes resultavam da superposição de três elementos: marginalização social, sinceridade (sinônimos em sua obra) e índole sublime. E são esses os mesmos que João Antônio vê em Nélson Rodrigues, dramaturgo trágico com fama de tarado e reacionário; em "Garrincha", cuja biografia, ainda que não sendo a de um artista, está cheia dessas três qualidades essenciais; em "Aracy de Almeida", com suas interpretações de Noel Rosa e seu enjôo pela profissão de cantora; e assim por diante.
Esses novos "personagens" foram vítimas de formas mais sofisticadas de marginalização, é verdade, e tiveram a chance de racionalizar um pouco melhor a sinceridade trágica de seus percursos. Para que aparecessem essas nuanças entre o sofrimento de seus marginalizados anônimos e o de seus retratados célebres, João Antônio se valeu de formas e informações diferentes das que sempre havia usado. Formas mais livres, informações culturais diversas das controladas por seus "merdunchos". Mas, ainda assim, valorizando os mesmos três componentes que moviam seus personagens.
A essência do novo livro está na busca por aqueles que, no mundo real, espelham o modelo ficcional. Na escolha e na composição dos retratos, que formam o eixo de "Dama do Encantado" e que também compõem seu panteão pessoal, ecoam as virtudes básicas de sua literatura. Marginalização, sinceridade e índole sublime.

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