São Paulo, sábado, 14 de junho de 1997
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O idioma de Hegel

PAULO MENESES

o lugar que Hegel ocupa na história do pensamento humano leva os filósofos que o sucederam, e os estudiosos que elaboram teses sobre os mesmos, a situar sua posição em confronto ou contraste com a filosofia hegeliana, e a fazer da filosofia que atribuem a Hegel apenas um contraponto às idéias que defendem. Deste modo, interpretam-na em função de outro pensamento, nas categorias deste, e o que há de mais característico na filosofia de Hegel, sua dialética peculiar, escapa destas exposições ou sofre uma deformação irrecuperável.
Assim, a única possibilidade de penetrar no pensamento de Hegel é estudar diretamente as obras do filósofo. A dificuldade notória desta filosofia faz procurar caminhos e auxílios externos, que ajudem no corpo a corpo com um texto obscuro. As traduções, os comentários, são de grande utilidade; porém mais útil ainda me parece ser um bom dicionário como este, que esclareça o sentido das palavras que Hegel usou, e os diversos matizes e significações que têm nos diversos contextos em que se empregam.
É surpreendente que uma obra de tanto alcance seja escrita por um só autor: a vastidão dos temas que Hegel cobriu em seus estudos levaria a pensar que só uma equipe, após alguns anos de pesquisas, poderia levar a cabo tal empreendimento. Mas, ao que se depreende, Inwood o realizou em um ano sabático. Na certa, muito estudo preliminar terá precedido a redação final. Mesmo assim, nota-se que o "Dicionário" não é exaustivo: não oferece um mapa completo da mina, mas apenas um roteiro e pontos de referência para os estudiosos procederem a análises mais finas e mais completas.
Seria engano pensar que, ao entender este "Dicionário", se estaria compreendendo o sistema hegeliano. Numa passagem do "Prefácio a Fenomenologia do Espírito", citada por Inwood, Hegel fala da embriaguez dionisíaca de sua dialética, desses círculos que são automovimentos -os conceitos. Sob este aspecto, um dicionário mais parece uma série de instantâneos, de imagens estáticas em que falta justamente o que é principal para nosso filósofo: o movimento. Além do que, a própria tarefa analítica e classificatória do dicionário leva a reduzir ao plano do "entendimento" o que Hegel pensara ao nível de "razão", segundo sua linguagem. Com essas ressalvas sabendo-se fazer um bom uso do "Dicionário", sem lhe pedir o que não pode dar, nem "tomar a nuvem por Juno", este livro é de grande utilidade, sobretudo como livro didático.
O autor faz um prefácio para a edição brasileira que mostra um Hegel simpático ao nosso continente, considerando-o a terra do futuro. Segue-se uma "Nota Introdutória" sobre o modo de usar o "Dicionário" e sobre as abreviações empregadas. Em seguida, em "Hegel e sua Linguagem", apresenta um estudo de grande interesse sobre a língua alemã, sobre o vocabulário filosófico alemão e sua formação; e, enfim, sobre a linguagem de Hegel, "difícil até para quem fala alemão e bem mais difícil para quem fala outras línguas".
Depreende-se destes trabalhos preliminares o quanto o autor está preparado para a tarefa que se propõe, e a segurança com que passa a definir o sentido dos principais termos utilizados na obra filosófica de Hegel. A seleção parece criteriosa, pois num livro relativamente sucinto oferece uma visão bastante completa do vocabulário de uma obra tão vasta e variada como a de Hegel. Termina a parte introdutória com uma rápida apresentação do filósofo, de sua formação intelectual e da repercussão do hegelianismo durante a vida do filósofo e no período imediatamente ulterior.
Segue-se então o "Dicionário". É notável o esforço de clareza para expor conceitos de uma filosofia difícil e complexa. Os termos se encontram, na sua maior parte, agrupados segundo sua afinidade ou oposição: por exemplo, abstrato e concreto, crença, fé e opinião, punição e crime etc. Cada obra de Hegel merece um verbete próprio: "Fenomenologia do Espírito", "Filosofia do Direito" etc., encontram-se expostas em sua gênese, no lugar que ocupam na filosofia hegeliana, na sua repercussão. Seus temas recebem uma exposição sintética, com a clareza de sempre. Os vocábulos são mostrados tais como Hegel os recebeu dos filósofos anteriores; assim, "Idealismo" e "Idéia" partem de Platão e passam por Kant e Fichte. Aqui e ali se acham pequenas inexatidões; assim, diz-se em "Deus" que "os filósofos medievais recorrem à doutrina da dupla verdade", quando nada há de mais absurdo para o maior deles, Tomás de Aquino. Deveria estar: "alguns" filósofos. Aliás este verbete "Deus" e o "Cristianismo" não é, decerto, um dos mais inspirados do "Dicionário", como seriam "Essência", "Liberdade", "Sociedade Civil". Mas é inevitável que haja certa desigualdade entre os artigos, pois sempre algum tema foi objeto de estudo mais direto do autor, e a própria complexidade dos assuntos faz que alguns aspectos sejam destacados e outros deixados na sombra. Uma observação porém deve ser feita a "alienação" e "externação" ("Entfremdung" e "Entãusserung"); conceitos tão importantes na filosofia de Hegel, sobretudo na "Fenomenologia", estão aí tratados sem a devida distinção. Talvez isto se deva ao sistemático desconhecimento que muitos britânicos cultivam em relação ao pensamento francês (embora na bibliografia esteja citada a tradução inglesa de Jean Hyppolite -que distinguia bem os dois termos). Gauvin mostra num artigo célebre o uso dos dois termos em todas as passagens da "Fenomenologia" em que aparecem (in "Archives de Philosophie", 1962); e na sua esmerada tradução da "Fenomenologia", Labarrière diz que "Entfremdung" conota a impossibilidade de um retorno a partir de uma exterioridade radicalmente "estranha"("fremd"); ao contrário, a saída de si que exprime a interioridade como exterioridade se exprime por meio do termo "exteriorização" ("Entãusserung").
Não foi boa idéia do tradutor seguir o inglês ao verter "Einzeln" por individual, quando em geral os tradutores neolatinos já fixaram o termo "singular", que tem a vantagem de deixar individual para o "individuell" alemão. Por que não dizer "imediatez" como o tradutor espanhol, quando "imediatidade" (igualmente ausente do "Aurélio") é mais arrevesado? Mas não têm maior importância as equivalências que os tradutores encontrem, contanto que se saiba sempre a que termo alemão remetem. Uma última observação, referente ao autor inglês: sente-se a falta de esclarecimento sobre termos como "elemento" (elemento do ser, por exemplo, próximo de "seiende", que o italiano traduz por "ess-sente", também ausente). Uma omissão grave é a da "consciência infeliz", que ocupa lugar tão importante na "Fenomenologia" e mereceu tantos estudos memoráveis.
Mas essas observações de pormenor não podem diminuir o valor deste "Dicionário": deste considerável esforço de esclarecimento e de análise, que constitui um instrumento de primeira ordem para um primeiro contato com a filosofia hegeliana. O seu valor vai além disso: estudiosos com maior convívio com o sistema de Hegel também encontram o que aprender com o dicionário de Inwood, sobretudo no que tange a clareza. Em muitos ambientes filosóficos prevaleceu a idéia de que a profundeza está na razão direta da obscuridade. Hegel, ao contrário, fazia grande esforço para esclarecer seu pensamento. Muitas de suas "obscuridades" são efeito de não se estar familiarizado ainda com um pensamento tão peculiar e de não se dominar plenamente seu vocabulário. Neste ponto, o "Dicionário" de Inwood pode ser de grande auxílio.

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