São Paulo, sábado, 14 de junho de 1997
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Pilares da transição

CARLOS GUILHERME MOTA
O período analisado neste livro abrange desde a fase de "distensão política" do governo Geisel até o fim do governo Sarney, examinando-se as crises que constituíram os pilares da transição. Para tanto, Sallum esmiúça os processos que as forças políticas adotaram para transformar a ordem política. Embora o autor reconheça que o material de que dispõe e o período coberto sejam insuficientes para indicar as linhas de força dessa história, o leitor poderá captar a direção geral que a atual estratégia de desenvolvimento vem tomando. E mais: propõe-se aqui uma nova perspectiva para a compreensão de acontecimentos ulteriores, em particular o significado histórico da disputa para a presidência entre Collor e Lula.
"Labirintos", com esse título mediterrânico, combina rigor e inquietude com pesquisa paciente. Desde logo adverte que a transição política não terminou. A ordem política ganhou uma face civil a partir de 1985, mas a democracia que vem surgindo não possui até hoje feições totalmente definidas. A duração tem sido o aspecto mais notório dessa transição; isso intriga o autor, mas ele logo debita o fato à complexidade da mudança em questão, que atinge múltiplas dimensões da sociedade, da econômica à político-institucional.
De fato, trata-se de um processo complexo, e aqui retoma idéias já contidas num artigo clássico de sua autoria, em que constatava não se tratar apenas da agonia do regime autoritário de base militar e do nascimento automático de outro que se projetava mais democrático e de base civil. Para o sociólogo, o que estava em crise era o padrão de articulação entre capitais locais -privado e estatal- e o capital internacional. E a forma existente de agregação e representação de interesses econômico-sociais gerados em uma sociedade cada vez mais complexa, além da relação entre o setor público e privado no processo de desenvolvimento capitalista. Concluía Sallum, em 1988, ano do Congresso Constituinte: "Tais crises se condensam no núcleo político da sociedade, pondo em xeque não só o regime que se cuida de substituir, mas a própria forma de Estado, o Estado intervencionista vigente" (1).
Centrada na esfera política, a análise se movimenta de forma a captar os dinamismos dos vários segmentos sociais, ligados à transição, bem como o efeito das transformações econômicas e políticas internacionais. Sallum critica os estudos sobre a transição que têm se fixado apenas nos aspectos político-institucionais da mudança, e nota que "a busca da singularidade histórica não é o forte dessas abordagens". Além disso, tal situação de transição não aumenta, necessariamente, como por vezes se alega, a "indeterminação na vida social, a ponto de justificar a opção pelo individualismo metodológico, hoje tão difundido"...
Pretendendo renovar dentro da tradição da escola histórico-sociológica de Florestan Fernandes, a que pertence, e acolhendo exigências que reputa pertinentes dos "advogados do institucionalismo" -como Bolivar Lamounier-, o autor oferece nova perspectiva para a compreensão das relações políticas operando, ao mesmo tempo, com conceitos de Estado e regime de diversa origem intelectual. Essa mestiçagem teórica vai permitir caracterizar a diferença entre as mudanças políticas ocorridas nos anos 70 e começo dos 80 e aquelas iniciadas em 1983. No primeiro período, ocorreu uma liberalização política com crise do Estado; no segundo, ocorre a transição propriamente dita.
Nesse percurso, parte-se de uma caracterização dos anos 70. Qual a fonte responsável pelas mudanças? Quem liberalizaria o regime? Pressão das bases populares ou conjuntura internacional? O sociólogo indica que era bem mais complexo esse mundo habitualmente dividido entre o governo e "a oposição". Considerando a falta de homogeneidade no interior do regime militar, e sua duplicidade institucional/constitucional, o autor mostra as facções segmentadas de "agrupamentos militares, de composição variável no tempo, associadas a cliques de tecnocratas", facções em conflito, alternando-se no poder, mas evitando quebrar a "unidade revolucionária". O pilar do regime foi a presidência da República, aliás, também principal pólo de poder antes do golpe de 1964, do qual emanavam práticas e normas para controlar a heterogeneidade social e preservar a unidade "revolucionária".
Formou-se assim uma ordem política administrada por filtros que bloqueavam, em progressão, a transposição de divergências existentes na sociedade para o plano político-institucional e por um sistema de mecanismos tendentes a unificar e centralizar a vontade política que conseguia representação no sistema. Tais práticas desmobilizavam a sociedade, limitavam a participação popular nas eleições, restringiam fortemente o peso do eleitorado nas grandes cidades, esvaziavam a autonomia dos Estados na Federação, homogeneizavam os quadros dirigentes no rígido sistema bipartidário, militarizavam o exercício do poder de Estado.
Surgem então projetos transformadores, o principal sendo a construção de um capitalismo industrial com grande autonomia em relação aos processos de transnacionalização do capital posterior à Segunda Guerra. O outro projeto era o de se institucionalizar o próprio regime militar. Ambos nasceram com a escolha de Geisel, mas que o autor tem o cuidado de não priorizar. Era uma tendência histórico-estrutural já presente na sociedade brasileira: os dois projetos vinham sendo parcialmente tentados desde os anos 30. Constitui-se o novo bloco no poder, com a claque de tecnocratas civis, ligando militares "liberais" do grupo castelista com a corrente "profissionalizante" das Forças Armadas. Para o grupo Geisel, era preciso liberalizar para assegurar o controle político; ou seja, transformar a situação autoritária em regime autoritário, fazendo regredir a "linha dura". Na linguagem sempre confusa de Roberto Campos, impunha-se construir "um sistema consensual de democracia participativa (sic) com governo forte -mas capaz de criar e acomodar demandas maiores de participação popular com mecanismos permanentes de legitimidade e de lealdade sistêmica".
O objetivo era assegurar o controle político nas mãos de uma elite civil ligada aos "ideais de 1964", institucionalizando a aliança civil-militar, revalorizando-se o que se entendia por Federação e envolvendo os governadores e as elites regionais ligadas a eles. Tudo feito de modo controlado, experimental, "lento e gradual", mas não isento de ziguezagues.
Essa liberalização é acompanhada da perda relativa de capacidade de comando do governo. Surgem oposições, que aderem, como o MDB, ao processo de distensão, mas não ao autoritarismo, jogando na "ampliação de seu espaço". Citam-se episódios que, ao longo do processo, testaram o poder presidencial, mostrando-se como os "condottieri" da liberalização controlada não conseguiram controlar o processo que desencadearam. O autor assinala fatos importantes como o veto de Geisel a Delfim Netto na sucessão paulista, por não querer dar espaço para civis ligados à linha-dura nem para o empresariado paulista que ele representava, e delineia o quadro histórico-político a partir de episódios como o Riocentro e a saída de Golbery do governo Figueiredo, que provocam o pacote de novembro de 1981 etc.
O resultado geral é que o pacto desenvolvimentista nunca se orientou para quebrar aquilo que Caio Prado Jr. denominou de padrão colonial de exploração, em que as classes proprietárias absorvem os frutos da modernização econômica que promovem, deixando de fora a maioria da população. E aqui chegamos ao busilis da questão. Foi a crise do Estado desenvolvimentista que deu o impulso básico para a crise do regime militar e a democratização política do país, quando o governo não consegue mais dirigir a aliança desenvolvimentista e a sociedade como um todo. Com isso, a Nova República acabou por ser algo bem diferente do que imaginara o presidente Geisel. O pacto contra as diretas, que elegeu Tancredo, não resolveu a crise política iniciada em 83: ao contrário, contribuiu para "bloquear o seu desenvolvimento pleno e concentrado, convertendo-a em instabilidade". Mais uma vez, parece, a conciliação conservadora se instala.
De fato, a Nova República poderia ser apenas um equivalente político da ditadura de 64. Mas Sallum mostra que a Nova República acabou por se mostrar um arranjo político inovador, favorecendo a expansão dos impulsos democratizantes que inicialmente bloqueara. Ela permitiu, ao contrário do que pensava Florestan, que tendências internacionalizantes e democratizantes acabassem por encontrar forças sociais que as encarnassem, contraditando o "núcleo da interpretação que as esquerdas fazem do Brasil, de que ele é apenas mais um exemplo da dissociação estrutural que haveria entre capitalismo periférico e dependente e democracia".
Para completar seu percurso, o autor mostra que, apesar do florescimento da democracia ter contribuído para dificultar a finalização da transição, favoreceu também a emergência de novas condições na sociedade civil, que alavancariam depois uma reestruturação do padrão de dominação. Examinando os fracassos da Nova República, o autor identifica a natureza das crises, as dificuldades para superá-las e as forças sociais que tentam fazê-lo. Na sequência das políticas dos ministros Funaro, Bresser e Maílson, torna-se claro para o empresariado que o crescimento econômico e o controle das tensões sociais não pode ser apenas tarefa do Estado, mas teria que passar pela "ampliação do grau de associação da burguesia local com o capital estrangeiro, o que envolveria concessões liberalizantes em relação ao padrão auto-suficiente da estratégia de desenvolvimento adotada até então".
Para além da análise rigorosa, percebe-se o fio condutor do sociólogo que, a partir do estudo das crises, busca nesse labirinto elementos para a construção de uma democracia estável no país. E detecta a esquizofrenia que separou, e ainda continua em larga medida a antagonizar, direita e esquerda neste país. País que só se tornará democracia estável e moderna quando tiver dirigentes com políticas que contemplem, segundo pensa, "ao mesmo tempo, abertura para o exterior, desregulamentação e democratização da sociedade". Efetiva democratização, vale enfatizar, para além da conciliação "pós-moderna" e dos compromissos neocoronelísticos que sempre repontam na história do Brasil contemporâneo.

Nota:
1. Sallum, B., "O Estado da Transição - Política e Economia na Nova República" (Vértice, 1988).

Carlos Guilherme Mota é professor aposentado da USP, "visiting-scholar" da Universidade de Stanford (EUA) e autor de "Ideologia da Cultura Brasileira" (Ática).

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