São Paulo, sábado, 14 de junho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As obsessões de Ibsen

SAMUEL TITAN JR.

em torno de 1890, ele era sem dúvida a maior pedra de escândalo dos palcos europeus. A crítica militante, dum lado como do outro, encarregou-se de acrescentar sua fama. Foi chamado de "corvo norueguês emergindo de entre as rochas com seu apetite insaciável por carne corrupta", enquanto suas peças eram comparadas a "jorros de esgoto sobre o palco".
Mas também era tido (em parte graças aos bons serviços de Bernard Shaw) por líder moral do século que findava. É assim que, na Catalunha, Henrik Ibsen era lido e festejado por associações de trabalhadores anarquistas. Em 1893, lutando por desvencilhar-se do sufocante seio familiar, o jovem Bertrand Russell unia à leitura de Walt Whitman a admiração por Ibsen: via representado em "Espectros" todo o seu temor de não conseguir escapar à moralidade convencional, de não conseguir tocar uma vida mais "autêntica".
Enquanto isso, em Dublin, um rapazola de nome James Joyce esforçava-se por aprender sozinho a língua norueguesa, a fim de ler no original as obras do grande mestre: chegaria mesmo a enviar-lhe uma carta de saudações entusiásticas. E mesmo deste outro lado do Atlântico o impacto de Ibsen fez-se sentir: nos primeiros anos do século, nosso Araripe Jr. dedicou-lhe integralmente uma monografia ainda hoje interessante.
É difícil imaginar, nos dias que correm, uma "mera" peça de teatro a causar tanto escândalo -ainda mais em se tratando de Ibsen. Boa parte dos temas candentes há um século foi dar ao tacho da banalidade; ao menos num certo sentido, Ibsen caducou junto com os modos de vida oitocentistas e seus dilemas de estimação. Para tomar um único exemplo: sua mitologia pessoal de "vocação", "vontade", "ideal", presente desde "Brand" (1866), podia bem causar comoção juntos aos moços de outrora -mas onde estão os moços de antão? Depois de perder algo do seu "glamour" na voz dos vários fascismos do século 20, a "vocação" não tem mais lugar na era dos tristemente célebres "exames vocacionais", do emprego temporário e da aflitiva adaptação ao mercado de trabalho.
Essa mesma distância histórica pode tornar interessante, por outro viés, a leitura atenta de suas obras. O recente lançamento (em tradução direta do original) de "John Gabriel Borkman" (1986), sua penúltima peça, é um excelente pretexto para revisitar os métodos criativos e o universo de imagens obsessivas do autor. Encontram-se nesta todos os elementos familiares aos leitores das outras peças: cenários sufocantes, pelo acúmulo de móveis imponentes, cortinas pesadas e roupas de veludo; redução ao mínimo das "dramatis personae"; concentração temporal extrema; e um emaranhado de relações e inimizades, explícitas ou escusas, que comparecem todas ao mesmo tempo para fazer valer seus direitos: Ella e Gunhild disputam Erhart, pensando em Borkman; este, por sua vez, revela a luta de morte que travou com Hinkel por Ella e o poder; e assim por diante.
Há ainda a obsessão ibseniana com a idéia de destino pessoal: Borkman consumiu a si e a todos no esforço por consumar um ideal, uma tarefa, um projeto tão irrealizável quanto (ao menos para ele) incontornável. Nas falas de Borkman nota-se um eco distante dos devaneios do protagonista de "Peer Gyint" (1867), apenas desprovidos de qualquer frescor juvenil. Num ambiente de esgotamento progressivo, as antigas paixões tornam-se manias: Borkman passa anos a percorrer seus aposentos de um lado para outro, como um leão enjaulado; no andar inferior, sua esposa vive tão-somente do desejo de vingança ou, como diria ela mesma, de reparação. Tudo isso sem repararem que, afinal de contas, "já estão mortos".
É onde intervém uma outra marca registrada do estilo ibseniano: quando se abrem as cortinas, quase tudo já aconteceu. "Les jeux sont faits", e não há mais a fazer senão esperar que a roleta se detenha. George Steiner notou que os enredos ibsenianos são "epílogos a desastres prévios". No caso de "John Gabriel Borkman", a ação é pouco mais que exposição do passado; o breve lapso de tempo representado em cena, os personagens o passam a remoer raivas e ressentimentos antigos. Isto implica um deslocamento do centro de gravidade do diálogo dramático, do presente para o passado. Ora, como notou Anatol Rosenfeld, isto por sua vez implica a intromissão de um elemento épico -a exposição rememorativa- que rompe com as normas clássicas do gênero dramático e prefigura tanta coisa do teatro moderno.
Digamos que, com isso, a ambição de Ibsen foi a de trazer para o palco algo da densidade analítica do romance oitocentista. O esforço se faz notar em todas as peças: em "Rosmersholm" (1886), por exemplo, ele marcara um tento admirável, ao livrar-se de tantas convenções do melodrama e criar algo assim como um diálogo introspectivo, um diálogo interior, em que se misturavam rememoração e delírio presente, com resultados terríveis. Mas o método tem lá seu ônus: como conciliar a tragicidade da ação presente com a análise? Isto não é problema para o romance, onde o uso da terceira pessoa confere ao narrador a distância necessária para a análise, explícita (Stendhal) ou não (Flaubert); também não seria problema para o teatro clássico, onde o uso disseminado do aparte cria uma espécie de lugar de direito para o "aperçu" clarividente. Mas como transferir aos personagens os privilégios do narrador, sem entretanto destruir a coerência dramática da obra? Ou por outra: como embutir o elemento analítico num diálogo que, para ser trágico, deveria conservar algo de sua intransparência?
A solução varia de peça para peça. É de se temer apenas que, em "John Gabriel Borkman", ela não tenha sido das mais felizes: várias são as falas com ar de diagnóstico psicanalítico; tanta é a clarividência dos personagens, tão grande sua articulação verbal e seu acúmen humano que o turbilhão trágico parece recuar, retroceder a uma distância da qual não chega a afetar ninguém.
Nenhum destes reparos chega a tirar o interesse da peça. Mesmo numa obra em que o autor não alcança o melhor de si, notam-se os traços da intensa pesquisa formal, do mesmo esforço por alargar o âmbito do palco e ultrapassar as barreiras de gênero que deram tão belos frutos em "O Pato Selvagem", "Rosmersholm" ou "Quando os Mortos Despertamos".

Nota 1.
Raymond Williams - "Drama from Ibsen to Brecht" (Nova York, Oxford UP, 1966).

Texto Anterior: Otimismo jeca-tatu
Próximo Texto: Vozes da poesia brasileira
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.