São Paulo, domingo, 15 de junho de 1997
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Por que apodrecem as maçãs?

MARCOS LUIZ BRETAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A se crer no noticiário policial, as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo viram ocorrer recentemente uma infinidade de "fatos isolados" de violência, cometidos por algumas maçãs podres do sistema policial, que não representam verdadeiramente as tradições policiais de nossos Estados.
Não se pretende aqui duvidar da palavra de nossos administradores policiais, tentando provar que tantos acontecimentos dificilmente podem ser considerados como "isolados", mas discutir as razões de seu aparecimento. Se tantos policiais se tornam maçãs podres -como o número de exclusões de nossas polícias torna evidente- é preciso perguntar se não é o sistema de armazenamento, o sistema policial brasileiro, que está favorecendo tal apodrecimento.
Por que a polícia brasileira permite tamanho descontrole? Existem diversas respostas disponíveis, algumas mais, outras menos corretas. A primeira delas, e uma das mais difíceis de aceitar, é oferecida pelos próprios policiais: dizem eles que a polícia reflete a sociedade em que ela existe e, portanto, a violência policial é a mesma violência da sociedade.
Se isto é correto, cabe perguntar, então, para que gastar tanto dinheiro com polícia. O objetivo de sua existência é controlar as formas de violência da sociedade, e não reproduzi-las; o fato de criarmos um sistema policial e lhe darmos poderes especiais só se justifica para ajudar a transformar a sociedade, e não para contaminar a polícia. Violência, basta a nossa.
Uma segunda explicação, proveniente das forças policiais, merece maior atenção: o policial não é reconhecido socialmente, recebe salários pífios e, em sua grande maioria, tem níveis educacionais extremamente baixos para papel tão relevante. Isso é inegável e, frequentemente, é esquecido tanto por governantes como por administradores da segurança pública, mais preocupados com a quantidade do que com a qualidade policial. Provavelmente, uma força menor e melhor preparada permitiria melhores resultados. A impressão que se tem do recrutamento atual é semelhante a um grupo de crianças brincando de polícia e ladrão; estar de um lado ou do outro é obra do acaso, e as regras do jogo (ou a falta de regras) são as mesmas para todos.
Mas é preciso não esquecer que aprimoramento e salários melhores não são uma fórmula mágica, capaz de tudo resolver. Policiais com carros importados e casas de campo estão além das possibilidades do setor público, e as chances de ganho na ilegalidade sempre ultrapassarão as da legalidade. Talvez o único efeito seja o aumento do preço no mercado de drogas, refletindo o custo mais elevado da corrupção. Além disso, baixos salários, má educação ou falta de reconhecimento não são exclusividade de policiais, mas servem para representar uma boa parcela das ocupações em nosso país.
Finalmente, no arsenal das explicações comuns, vem o expediente de botar a culpa nos governos militares. Aqui se peca por exagero; isto eles não fizeram. Um pequeno estudo da história das polícias brasileiras mostra que o problema é muito antigo e o máximo que podemos dizer dos militares é que eles aproveitaram bem (?) o know-how policial, como já havia feito o Getúlio do Estado Novo.
O efeito perverso -para as polícias em sua forma tradicional- dos abusos da ditadura, conjugado a uma expansão da atividade criminal a partir dos anos 60, sentida em todo o Ocidente e ligada ao novo tratamento do problema das drogas, foi o que abriu os olhos das camadas médias brasileiras para a violência cotidiana. Até então, todos se satisfaziam em pensar que a violência estava do outro lado da estratificação social.
É devido a esse escrutínio das camadas médias educadas que a polícia hoje se sente tão desconfortável, e busca distribuir culpas de forma a não tocar sua estrutura e seus supostos privilégios, sem perceber o quanto poderiam ganhar com possíveis reformas (claro que há exceções; se o leitor é uma delas, por favor sinta-se excluído da discussão e reconheça que ela diz respeito a boa parte das polícias brasileiras). Mas mesmo esses grupos sociais, capazes de oferecer respostas para quase tudo, se sentem desnorteados entre os abusos policiais cotidianos e a violência criminal, também cotidiana. Ao mesmo tempo que pedem uma polícia menos arbitrária, esperam por medidas mais duras contra o crime, aceitando em boa parte as práticas policiais estabelecidas de combate ao crime. Por isso, talvez seja útil sugerir outras respostas para a existência de tantas maçãs podres.
Em primeiro lugar, a história nos mostra que os abusos policiais existem de longa data, como nos abusos do Vidigal, ainda nos tempos de d. João 6º, narrados nas "Memórias de um Sargento de Milícias". Podem ser atribuídos aos diferentes dominadores, e atravessam os diferentes regimes, governos e partidos. Isso nos leva a crer numa enorme independência da polícia em relação ao Estado, desenvolvendo a violência como sistema de operação, em que o Estado se interesse desde que ela ofereça resultados mínimos. Ao mesmo tempo, a independência policial permite ao Estado absolver-se nos momentos em que esta violência se torna intolerável... responsabilizando a polícia!
Essa ainda é a base do relacionamento do Poder Executivo estadual com suas polícias. Apesar de formalmente parte dessa Executivo, as polícias funcionam numa esfera própria, em que não há nenhum controle, exceto as formas de controle interno, que têm se mostrado ineficazes. É bem verdade que nos últimos dez ou 15 anos diversos governos procuram enquadrar as suas polícias, mas com poucos resultados.
A forma de resistência policial a determinações indesejáveis é a paralisia do arremedo de segurança pública que temos, sem que o Estado seja capaz de oferecer alternativas, causando uma enorme grita na imprensa (o Rio foi, recentemente, cenário de uma interessante experiência social nesse sentido: após a gravação de abusos policiais e fortes críticas da imprensa, a Secretaria de Segurança determinou que a polícia não entraria em favelas à noite sem autorização prévia; logo os conflitos do narcotráfico começaram a produzir vítimas e a imprensa passou a se queixar da ausência da polícia. Para muitos, o pesadelo da ação é preferível à inércia).
A solução que já se tentou algumas vezes na história é a de criar uma nova polícia -guarda civil, guarda urbana, guarda municipal-, experimento que sempre fracassou mas que, ainda assim, pode e deve ser tentado. O problema é que isso não resolve o que fazer com o elefante branco da velha polícia. Para intervir com chances de sucesso, o Poder Executivo precisa não apenas de princípios e normas, mas de formas que assegurem um mínimo de eficiência para qualquer proposta de novas formas de policiamento. Isso sem esquecer que boa parte destas transformações terá de passar pelo poder legislativo...
Este poder é talvez o que tenha relações menos visíveis com o problema policial, matéria da relação entre o Executivo e o Judiciário. Mas, ainda assim, ali foi gestado o labirinto legal que obsta as tentativas de reforma, e ali se perdem ou se descaracterizam as iniciativas. As polícias sabem disso, e exercem no congresso um poderoso lobby.
Colocando a questão de forma simplificada, poderíamos dizer que a organização da polícia não deveria ser matéria constitucional; de forma mais elaborada, será preciso discutir qual o papel do governo federal na promoção da segurança pública, seus mecanismos para influenciar os Estados ou para agir diretamente por meio de sua polícia federal.
Melhor do que fazer leis sobre leis seria definir padrões desejáveis de ação policial, podendo ser vista por eles como benéfica, mas, ao mesmo tempo em que impede as mudanças a que a polícia resiste, a multiplicidade de esferas prejudica o trabalho policial, que muitas vezes esbarra em determinações diferentes de acordo com a autoridade a ser ouvida, provocando os conflitos de competência que muitas vezes vão terminar no outro poder: o Judiciário.
A tarefa de polícia judiciária é uma das mais importantes das forças policiais, e certamente a função primordial de nossa polícia civil. Mesmo sendo um agente do Poder Executivo, é para o Judiciário que se dirige boa parte da atividade policial. Esta relação não é nada fácil, havendo algo que poderia ser chamado de antipatia estrutural entre as duas partes. O lugar do inquérito policial no processo criminal brasileiro gera uma boa parte desses problemas, expresso na dificuldade/desinteresse de controle judiciário da investigação policial.
Tudo isso leva ao últimos ponto: a forma como o nosso serviço policial se organizou cria uma série de zonas de indefinição, abarcando as questões fundamentais sobre o que a polícia deve fazer, como deve fazer, e a quem ela presta contas, sem esquecer a questão de quem deve definir isso tudo.
As tarefas são inúmeras, como soem ser em todas as polícias, mas nossas polícias conservam um par de idéias centrais: manter a ordem e combater os criminosos. O resto faz parte do rosário de queixas policiais, e os impediria de cumprir estas missões centrais como gostariam. Se há muitas tarefas, muito pouco é dito sobre como cumpri-las, seja oferecendo treinamento para a investigação criminal, seja exigindo o cumprimento das normas jurídicas a respeito das condições de produção policial.
O discurso recente sobre os direitos humanos é enfrentado com argumentos sobre a necessidade de empregar os mesmos recursos que os criminosos, numa outra versão do mimetismo policial, que em vez de refletir a sociedade passa a refletir os criminosos. Mesmo que boa parte da população concorde com esta tese, ela faz dos policiais criaturas impuras, tão perigosas quanto seus oponentes, e que também se gostaria de excluir do convívio social.
Repensar a polícia e produzir menos abusos exigirá antes de mais nada redefinir os objetivos policiais, em primeiro lugar elevando a idéia de manutenção da ordem a seu lugar de proteção e garantia dos direitos dos cidadãos, seja por meio da gestão de conflitos, seja pela prestação de tantos serviços que a polícia é capaz de oferecer pela enorme extensão de seu raio de ação.
Na esfera propriamente criminal, será preciso mudar a mentalidade de combate aos criminosos, privilegiando sempre formas de controle do crime que evitem o confronto -a cessação das atividades é mais importante que a prisão de fulano ou sicrano- pela expansão da polícia técnica e do uso de informações. Infelizmente, isso não se fará apenas pela oferta desses serviços e informações, mas exige uma mudança para impedir que nosso policiamento continue a ser feito por indivíduos que possam ou aspirem a ser chamados de Rambo. Não é esse o policial que precisamos ou queremos.

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